quarta-feira, 29 de agosto de 2018

Crônicas amadoras #1: Crônica da manhã

Crônica da manhã
por Miguel Boisseleau

Nossa primeira crônica amadora




Uma manhã


Quando eu acordei hoje, vi que estava inconsciente. Não via nada, nem mesmo um raio de luz. Tudo estava tão escuro e tenebroso, fiquei com medo. O desespero veio, tentava com todas as minhas forças entender o que era aquilo que sentia. Será que morri? Tentei me debater, nada, nenhum movimento, somente minha respiração absurdamente lenta. Meu pé formigava, sentia o lençol caindo de minha perna. Tentei sentir o resto do meu corpo. A partir do toque, eu pensei no meu nariz. O cheiro era bem comum, um cheiro morno de uma fronha recém trocada; se hoje for a última manhã, sentirei falta deste cheiro querido. Cheguei à conclusão que estava preso em mim mesmo. Não sabia o que estava acontecendo. Isto durou alguns segundos, até o momento em que decidi ficar consciente e abrir os olhos para o sol.

Esta manhã me pareceu muito estranha... Ficar consciente da minha inconsciência é coisa do bicho peludo, ou talvez não. Escrevi um pouco em meu caderno de rascunhos e decidi que era necessário tomar uma providência em relação a este acontecimento. Me lembrava muito das aulas sobre Freud, mas nada que pudesse fazer com que eu entendesse o que me tinha acontecido.

Liguei para um amigo que tinha passado por algo semelhante, e pedi para ele me encontrar na Travessa às quatorze horas.

Cheguei cedo demais. Meio dia e trinta, lá estava eu vasculhando a Rússia ocidental e oriental, à procura dos Possuídos ou dos Demônios. Eu queria descobrir aquilo que interrompia meu sono, e que não me dava controle sobre meu corpo.

Eu menti... Não é a primeira vez que isso me acontece. Já faz algumas semanas que estou perturbado por tudo que tem acontecido. Acordar, levantar, sentir o sol, ler, escrever, estudar, dar atenção ao mundo... Nada mais faz sentido; pelo menos não diante desta rotina. O pior de tudo, não é fato de eu acordar com medo, e sim do fato de eu dormir com esperanças. Há uma grande diferença nisto. Acordar, segundo poetas, é querer estar consciente daquilo que nos torna inconscientes. É sentir com prazer as lágrimas escorrendo pelo pescoço após uma decepção, ou amar ter um coração partido, ou até ficar feliz ao saber que o sofrimento veio, ficou e voltará. Dormir, segundo arquitetos, é não querer estar consciente na hora da vida. É pular nas folhas caídas de outono, ou abraçar um ente querido que não vimos por dois dias, ou até mesmo detestar ter que sair mais cedo de um encontro familiar.

Meu amigo chegou, com suas olheiras bem visíveis:
- Miguel! Há quanto tempo não nos vemos, como tem passado?

Conversa rolou, se entortou, revirou... Após passar pelas necessidades básicas, me permiti abordar o assunto tão esperado.
- Entendo, você acha então que não é nada grave? Que é uma besteira? Que estou paranoico e obcecado pela dor? Talvez você esteja certo. Estar consciente é tão bom. Poder sentir as minhas veias pulsando a cada passo que dou em direção ao abismo. Parece que sou mais um alvo, ele olha tanto para mim... Mas nunca consegue me puxar até ele. Eu brinco muito com este nosso parente; acho que é isso que me faz dormir toda manhã.

Me despeço do meu amigo, o acompanho até a porta da livraria e digo que vou ficar mais um tempo por aqui. Volto correndo pra Sibéria.

Me despeço da Travessa e volto para casa. Abro a porta do meu prédio, subo para o meu andar, abro a porta de casa e deito no chão.

Eu sinto medo de não sofrer.



Miguel Boisseleau, Rio de Janeiro 30 de junho de 2018.





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