domingo, 23 de dezembro de 2018

David Lynch: Entre Som e Linguagem

David Lynch, entre Som e Linguagem
Por Luca Szaniecki Cocco

David Lynch é sem dúvida um dos mais únicos e interessantes diretores de sua geração. Se seus filmes são caracterizados por mensagens crípticas e difíceis de traduzir em palavras, pela mistura entre o familiar e o estranho, o amoroso e o grotesco, isto é em grande parte explicado pela sua estranha relação com a linguagem e o som. Estudaremos então qual a importância e a percepção da Linguagem e do Som na obra cinematográfica e plástica de David Lynch.



Em 1979, Lynch dirigiu pela primeira vez o que se tornou um clássico do mundo do cinema: Eraserhead. Desde o príncipio, Lynch ficou conhecido por nunca esclarecer as suas intenções ao filmar: “As soon as you put things in words, no one ever sees the film the same way, and that’s what I hate, you know” (“No momento em que colocamos coisas em palavras, ninguém mais vê o filme da mesma maneira, e é isso que eu odeio”). Lynch deseja que o espectador tire suas próprias conclusões das várias simbologias presentes em seus filmes. Ora, como ele mesmo diz, isso tem a ver com “pôr as coisas em palavras”: ao pôr em palavras uma obra visual, artística, Lynch sugere que há justamente uma superficialidade ao “traduzir” imagens de sentimentos, sensações e pensamentos em simples palavras. No processo de explicação, que é uma tradução objetiva, há um deslocamento da mensagem, justamente o porquê de Lynch nunca defender uma mensagem única, objetiva. Lynch se recusa a impor uma mensagem, uma interpretação oficial e sugere que a “mensagem” de seus filmes deve ser alcançada além da explicação.

Não precisamos ir muito longe para começarmos a entender essa distinta percepção da linguagem na obra de Lynch. O personagem de Gordon em Twin Peaks, por exemplo, interpretado pelo próprio David Lynch, esclarece bastante pontos. Como Dennis Lim, autor de uma biografia (“The Man from another place”) de Lynch, explica: “So much about Lynch’s fraught relatonship with language is summed up in that voice, in its unnvervingly high volume and halting cadence” (“Muito sobre o tenso relacionamento de Lynch com a linguagem é resumido naquela voz, em seu alto volume e cadência hesitante”). De fato, o personagem de Gordon tem problemas auditivos, o que torna os seus diálogos bastante desagradáveis de escutar, pois são marcados por frases altas e exageradas. Justamente, para Lynch, palavras não vão muito além de sons desagradáveis e exagerados.



Em um ótimo vídeo que explica a relação de Lynch com a linguagem (colocarei o link abaixo), a autora diz: “For Lynch, the drawing of an “ant” and the written word “ant” are never co-equal or necessarily co-descriptive” (“Para Lynch, o desenho de uma formiga e a palavra escrita “formiga” nunca são co-iguais ou necessariamente co-descritivas”). Isso lembra bastante o que Saussure, importante linguista, diz sobre o “signo linguístico”. De fato, este divide o signo linguístico em dois: um conceito e uma imagem acústica (que nem sempre é expressada oralmente, pois, pode estar na forma de diálogo interno). Ele explica então que a relação entre essas duas entidades é completamente arbitrária: ela não possui uma relação natural, é uma relação convencional. Não é uma relação natural que liga o conceito “formiga” à sua manifestação linguística “for-mi-ga”. Lynch então segue a mesma linha de raciocínio: no seu caso, o desenho de uma formiga (manifestação artística) nunca é co-descritiva da palavra em si. É difícil entender, porém, poderíamos dizer que o desenho de uma formiga, que nós normalmente associamos à palavra “formiga”, não é nada além de uma série de linhas que através de convenções sociais a transformamos em “formiga”. Lynch deseja voltar à forma original, primitiva, e, sobretudo, psicológica, subjetiva das linhas que formam o desenho da formiga.

Devido à artificialidade intríseca à tradução de imagens para palavras, Lynch é bastante desconfiado e reduz as palavras em instrumentos convencionais perturbadores. A obra de David Lynch e sua relação com a linguagem pode ser resumida em poucas palavras: uma desconfiança da palavra e de seu poder. Em um de seus primeiros curtas, The Alphabet (1968), por exemplo, uma criança é atormentada pela aprendizagem do alfabeto, que assombra os seus sonhos, que se tornam cada vez mais violentos e gráficos (é um curta bastante sombrio e difícil de assistir). Em um sonho em particular, as letras do alfabeto aparecem “invadindo” violentamente a cabeça e o cérebro de uma figura humana que começa a sangrar. Desse modo, Lynch sugere que há algo de violento na aprendizagem da própria linguagem, na imposição das palavras como convenções sociais inevitáveis.

Essa concepção traiçoeira da linguagem se manifesta em uma série de cenas e personagens que usaremos como exemplos. De fato, raros são os filmes de Lynch que não possuem algum tipo de personagem com vozes distorcidas, distantes ou estranhas, ou cenas constrangedoras pela sua aparente falta de sentido. Comecemos com seu curta The Grandmother (1970), curta que também explora o tema da infância, assim como em The Alphabet, a linguagem é substituída por sons onomatopaicos e estranhos.

Outro exemplo seria o próprio Eraserhead cujos diálogos são curtos e sem nexo aparente, característica que fica extremamente clara na famosa cena do jantar. A mesma característica pode ser vista, por exemplo, em Twin Peaks o Retorno (3a temporada) que foi marcado por uma série de diálogos “aleatórios” que, explicitamente, não parecem ter nenhum sentido ou objetivo no âmbito da história. Se há alguma racionalidade nesses diálogos, esta racionalidade está confinada na cabeça do diretor, que deixa aberta a interpretação de seu espectador. Os diálogos de Lynch vão além da lógica e da racionalidade, e, dessa forma, isso o distingue de outros mestres do diálogo cinematográfico contemporâneo como Tarantino ou os irmãos Coen.

Falando em Twin Peaks o Retorno, Lynch parece ter decidido tomar um rumo bem mais radical e difícil ao voltar às telonas: em uma (entre várias) cena particularmente difícil de assistir, por exemplo, Naido (a mulher misteriosa sem olhos) faz barulhos estranhos na cela de cadeia e um bêbado as imita continuamente a ponto de enlouquecer os outros presos e o espectador. Neste exemplo, palavras perdem o seu próprio sentido e voltam ao estado de sons primitivos e hipnóticos (aspecto do qual falaremos mais tarde). Twin Peaks é repleto de outros casos emblemáticos, alguns que já citamos, como o caso de Gordon, outros que podemos citar agora: o personagem de The Arm, por exemplo, fala ao contrário, e o Gigante/Bombeiro, só fala sob formas de enigmas. Aliás, não existe cena mais genial do que quando Andy é levado para o mundo do Bombeiro, que lhe mostra uma série de imagens explicando o que ele deve fazer: nunca nada é explicado por palavras, mas sim por imagens e sugestões imagéticas. Ironicamente, Andy seria o único capaz de entender a mensagem e salvar o dia. Palavras nem sempre são a melhor forma de explicar algo.




O caso de “Rabbits” é bastante interessante. É uma série de curtas que brinca, de modo bem experimental, com a criação de “reality-shows”. Os diálogos são da mais pura aleatoriedade, sem sentido, com enormes espaços de silêncio entre uma fala e outra. Muitas falas também são acompanhadas de risadas, mesmo não tendo nenhuma piada. A piada parece se tornar aquele universo absurdo e sombrio onde não para de chover e seus habitantes coelhos precisam conversar para se ocupar e entreter o espectador.

Desse modo, Lynch reduz a linguagem a um som primitivo, desagradável e tão enigmático quanto seus filmes. O processo de aprendizagem da linguagem é um processo violento que impõe uma convenção, uma interpretação oficial da realidade. Portanto, essa visão das palavras e da linguagem não é, de modo algum, uma redução de seu poder. Como dito antes, Lynch desconfia das palavras, porém, também teme seu poder e influência na escala subjetiva: “Talking-it’s real dangerous” (“Falar-é muito perigoso”)

Para estudar o poder das palavras podemos usar um pouco de Jean-Paul Sartre quando este diz em seu ensaio, “Que é escrever?”, que “Falar é agir: uma coisa nomeada não é mais inteiramente a mesma, perdeu a sua inocência” (SARTRE, 1948). Vemos a mesma ideia de perda de inocência na obra de Lynch, inclusive nos seus trabalhos fora da esfera cinematográfica. O seu trabalho plástico “Ricky Board”, é um exemplo emblemático e muito interessante. A obra consiste em uma sucessão de abelhas mortas, cada uma com um nome diferente. Parafraseando um pequeno poema inscrito na obra, isso mostra que ao dar títulos, nomes, ou seja, palavras, a objetos, estes não são mais os mesmos: “Even though they’re all the same the change comes from the name” (“Mesmo que sejam todos iguais, a mudança vem do nome”). Palavras tem poderes, assim como Brett Littman, curador de uma exposição dedicada a Lynch, diz: “ the act of naming something is never a simple gesture” (“o ato de nomear algo nunca é um simples gesto”). O ato de nomear, de pôr coisas em palavras é um gesto muito significativo, pois, esse ato constitui a nossa interpretação do mundo exterior: o mundo exterior perde progressivamente sua inocência natural.



Além disso, a voz e o corpo parecem muitas vezes separadas de seus personagens. Um exemplo significativo seria a cena de Mulholand Drive no Clube Silencio onde a música continua a tocar mesmo se a cantora cai inconsciente no solo do palco (um play-back basicamente). A voz, o som parece ser algo separado de seu próprio corpo. A linguagem em si, é algo não-natural, que não pertence ao corpo humano: talvez um próprio ser “outro”, um parasita.

De certa forma, Lynch segue uma tradição bastante romântica ao criticar a artificialidade das palavras: a maneira com a qual elas traem os sentimentos humanos mais complexos. Poderíamos usar essa citação de Bergson, por exemplo: “Quand nous éprouvons de l’amour ou de la haine, quand nous nous sentons joyeux ou tristes, est-ce bien notre sentiment lui-même qui arrive à notre conscience avec les mille nuances fugitives et les mille résonances profondes qui en font quelque chose d’absolument nôtre? Nous serions alors tous romanciers, tous poètes, tous musiciens. Mais le plus souvent nous n’apercevons de notre état d’âme que son déploiement extérieur. Nous ne saisissons de nos sentiments que leur aspect impersonnel, celui que le langage a pu noter une fois pour toutes parce qu’il est à peu près le même, dans les mêmes conditions, pour tous les hommes. Ainsi, jusque dans notre propre individu, l’individualité nous échappe.” (Bergson, Le Rire (1900), PUF, Quadrige, p.117-118).

Tradução: “Quando experimentamos amor ou ódio, quando nos sentimos alegres ou tristes, é o nosso próprio sentimento que vem à nossa consciência com as nuances fugazes e mil ressonâncias profundas que o tornam algo de absolutamente nosso? Seríamos então todos romancistas, todos poetas, todos músicos. Mas, na maioria das vezes, percebemos apenas nosso estado de espírito na sua implantação externa. Nós só percebemos nossos sentimentos no seu aspecto impessoal, que a linguagem tem sido capaz de notar de uma vez por todas, porque é quase o mesmo, sob as mesmas condições, para todos os homens. Assim, mesmo em nosso próprio indivíduo, a individualidade nos escapa”.

Por um lado, Lynch segue então essa forma de pensamento bastante romântica ao enfatizar o caráter impessoal e perigoso no ato de nomear. Ele defende uma maneira mais artística, mais imagética de compreender seus filmes, além do meio da pura palavra. Porém, Lynch vai além desse pensamento ao reduzir a linguagem a um estado primitivo: puro som. A linguagem se torna som e o som se torna linguagem, uma linguagem particularmente difícil, enigmática que permite à transição entre mundos. Não é a toa que toda sua obra é marcada pelo enorme trabalho em torno dos sons.

Para continuar, temos que tentar entender a relação entre som, corpos e geografia no universo de Lynch, relação que Randolph Jordan chama, em seu artigo “Interférence: la géographie sonore chez David Lynch” (“Interferência: a geografia sonora em David Lynch”), de “geografia sonora”. No começo do artigo, Jordan explica uma história muito interessante e a interpreta de acordo com o universo de Lynch: muitos fãs de Twin Peaks invadiram uma propriedade rural na Dakota do Sul (estado americano) que correspondia a uma coordenada achada em um site promocional da nova temporada da série, “The Search for the Zone” (quem viu a série irá entender o título). O site promocional também continha um três áudios nomeados “electrical_interference” (1 e 2) e “vortex”, dois sons bastante familiares para os fãs da série. Final da história: O proprietário teve que pedir privacidade aos invasores. Jordan tenta mostrar então como isso é emblemático dessa estranha relação entre a violação de territórios (a propriedade privada na Dakota do Sul), o som e corpos na obra de Lynch.

De fato, ele diz que “a ideia mesma de violação de território é, de fato, uma metáfora bem escolhida para pensar sobre a maneira como Lynch delimita o espaço cinematográfico”. O som se torna um meio pelo qual os corpos passam de um mundo para o outro, uma transgressão para territórios e mundos estranhos onde a linguagem não passa de um som primitivo e enigmático. O maior exemplo seria a “Black Lodge” de Twin Peaks, espécie de purgatório sombrio repleto de criaturas estranhas e cuja passagem sempre é acompanhada de som e música sombria (da qual falaremos mais tarde). De fato, essas passagens entre mundos são muitas vezes feitos com a presença de uma tecnologia de reprodução ou de transmissão de som, como vitrolas, por exemplo, mas também por efeitos sonoros, como interferências elétricas ou sons ambientes.

Na mesma cena em que a cantora do Clube Silêncio desmaia, mas a música continua a tocar, a personagem de Betty (Naomi Watts) é pega por convulsões violentas: essa ilusão do play-back foi tão violenta a ponto de desconstruir o “tecido mesmo do espaço, do tempo e da identidade”. Isso mostra que a passagem entre mundos, feita através do som, principalmente desse som “estrangeiro”, que fica fora do corpo humano, é uma passagem violenta ao corpo em si. Para passar de um mundo para o outro é preciso um certo sacrifício físico ou mental (perda da sanidade). O som pode ser então um viés para a invasão de um novo território, porém, pode ser também uma invasão do próprio corpo do personagem. Uma cena bastante emblemática dessa invasão é quando vemos a garota engolindo um estranho anfíbio no episódio 8, que já estudaremo em mais detalhes, de Twin Peaks o Retorno enquanto ouve o rádio, dominado pela voz do misterioso Lenhador.

Ora, todo som também precisa de uma espécie de receptáculo. Como vimos, o som não passa necessariamente pelo corpo biológico, porém, na obra de Lynch, ele muitas vezes encontra um local em aparelhos tecnológicos. Podemos dizer com relativa certeza que, além da desconfiança das palavras, Lynch possui uma visão bastante negativa quanto aos aparelhos de reprodução de som. Randolph Jordan explica que as “reações de histeria frente ao tratamento tecnológico da voz humana” remontam ao século XX quando o “espiritismos levava explicações sobrenaturais às tecnologias que separam o som do corpo”. De certa forma, Lynch é dá continuidade a essa percepção quando enfatiza essa estranha e violenta separação do corpo e do som/linguagem em seus filmes. Para Lynch, essa separação é o que leva seus personagens para outros mundos, porém, é também uma forma de enlouquecer ou “desaparecer”. De fato, a passagem entre mundos é um processo violento para os personagens que muitas vezes perdem suas identidades ou sua humanidade (há, de certa forma, uma radicalização da perda da individualidade da qual Bergson falava). O personagem de Philip Jeffries, por exemplo, interpretado pelo grande David Bowie aliás, é o exemplo que muitas vezes essas viagens não têm volta. No final de sua “vida” (se podemos chamar aquilo de vida), Jeffries se torna uma chaleira/telefone gigante preso entre os mundos (no posto de gasolina).








Nessa perspectiva de passagens de mundo, o aparelho mais usado em sua obra é a vitrola, vista em praticamente todo filme já realizado por David Lynch. Além do mais, o que todos esses sons e instrumentos possuem algo em comum: uma estranha concepção do mundo como um circuito contínuo. Tanto a forma circular da vitrola, os diálogos hipnóticos, quanto os “vortex” ou as repetições de sons, “arranhados” e poemas, sugerem um certo efeito de loop infinito. Isso mostra que o som sempre esteve muito ligado à própria linha temporal e existencial dos mundos de Lynch. O final de Twin Peaks é emblemático dessa relação entre som, linhas temporais e o infinito. O próprio Phillip Jeffries, que já citamos anteriormente, em uma cena em particular solta rapidamente um símbolo do infinito antes dele se tornar um 8.

Agora faremos uma breve análise do episódio 8 de Twin Peaks o Retorno, que já foi citado anteriormente, pois, este esclarece muito bem alguns aspectos que já tratamos aqui e por essa razão merece uma análise mais aprofundada. O episódio introduz uma longa sequência de cenas bastante interessantes (não pude achar adjetivo melhor) e únicas no universo da série. Após um teste nuclear no deserto do Novo México (aliás, cena incrível e hipnótica), um grupo de lenhadores misteriosos aparecem do nada, sempre acompanhados por estranhos barulhos de estática (que Jordan chama de “sons ameaçadores de arranhados”) e uma “música atmosférica lúgubre”. Um destes lenhadores acaba atacando e tomando controle da Rádio KPJK e começa a entoar uma misteriosa poesia para todos os ouvintes. Vemos então uma jovem menina (que já havia aparecido mais cedo no episódio) engolindo uma criatura reptiliana nascida destes testes nucleares (e implicitamente da entidade do mau absoluto, Judy) enquanto escuta o poema do Lenhador. Essa cena em particular exemplifica de modo radical o que tentei mostrar: a violação do corpo pelo som, essa violenta forma de parasitismo sonoro. O próprio tema de violação do corpo não é novo no universo de Twin Peaks, como mostra a sobrenatural relação entre Bob, Leland e Laura Palmer. Voltando ao episódio 8, alguns fãs foram ainda mais longe na análise: Judy (a entidade do mau absoluto) põe seus ovos no deserto após os primeiros testes nucleares da região e a utilização da rádio por um de seus “filhos” (o Lenhador) pode ser uma metáfora para a expansão da propaganda armamentista da Guerra Fria pela rádio. Nos dois casos, o som é algo de penetrador, parasita, que entra e se espalha em seus hospedeiros.





O som é a textura temporal existencial dos mundos estranhos e paralelos de David Lynch. Existencial, pois modifica a existência de seus personagens e a própria estrutura do mundo. E temporal, porque, como no final de Twin Peaks o Retorno, ele também permite viagens no tempo. A obra de Lynch deve muito ao trabalho nos sons: efeitos sonoros bizarros, atmosféricos, elétricos, assustadores. Eraserhead, por exemplo, não seria um clássico sem os sons ambientes, os gritos do bebê e os efeitos sonoros nojentos que contribuem para criar aquele mundo apocalíptico-industrial da imaginação de Lynch. Além disso, uma das principais características dos efeitos sonoros lyncheanos é seu caráter orgânico, digamos. O som parece ser algo vivo, orgânico, uma continuação e descontinuação do corpo. É um detalhe, realmente, porém, ajuda na construção dessa atmosfera estranha e nojenta, principalmente em Twin Peaks e Eraserhead. Isso também pode ser visto em seus efeitos visuais, que muitas vezes parecem mal feitos justamente por causa desse caráter orgânico (conferir cena em que Naido se transforma em Diane para entender o que quero dizer).

Se Lynch reduz a linguagem ao puro som e vice-versa, ele também faz o mesmo com a música. Acho que qualquer artigo sobre a obra de David Lynch merece uma homenagem ao seu trabalho musical, que também pode ser considerado um trabalho nos sons. A música é som, mas, ao mesmo tempo é também uma linguagem abstrata extremamente complexa, e Lynch sabe usar esse aspecto da música com maestria em seus filmes. A parceria entre Lynch e Angelo Badalamenti, seu compositor “oficial”, é comparável a outras grandes parcerias musicais no cinema: Tim Burton e Danny Elfman, Sergio Leone e Ennio Morricone, Miyazaki e Joe Hisaishi, entre outras. Badalamenti é, assim como Lynch, um grande construtor de mundos: para o personagem de The Arm de Twin Peaks, Lynch e Badalamenti criam mundos onde “there is always music in the air” (música está sempre no ar). Com uma música extremamente atmosférica, ele é capaz de criar a perfeita ambientação estranha, misteriosa e, ao mesmo tempo aconchegante e luminosa do universo lyncheano. Acho que suas duas maiores obras-primas são as trilhas sonoras de Blue Velvet e da série de Twin Peaks. Aliás, recomendo muito esse vídeo onde Badalamenti mostra o processo de criação de uma de suas mais icônicas composições, o tema de Laura Palmer (porei o link abaixo do artigo).

Para concluir, a obra lyncheana é sempre construída a partir do som: o som é a textura de seus universos. O som, a linguagem, a música são os materiais que Lynch e Badalamenti usam para construir seus mundos. O som é um instrumento que atravessa as dimensões da existência e que pode servir tanto para a confusão, para o sofrimento, quanto para desvendar os mistérios da vida. De todos os sentidos dentro da sinestesia lyncheana, o som é, sem dúvidas, o mais importante. O que caracteriza Lynch é justamente essa valorização e desconfiança do som e da linguagem, porém, isso se inscreve na sua busca pela mais legítima manifestação dos sentimentos e impressões subjetivas. É por essa razão que suas imagens cinematográficas são tão impactantes, pois, ele sabe manipular e deformar os nossos sentidos em seu favor, ou seja, para mostrar seus sentimentos e suas ideias. Isso não quer dizer que torne seus filmes mais inteligíveis, pelo contrário, porém se transformam em uma experiência mais impactante. O visual, para Lynch, é sonoro.

Links:

David Lynch: The treachery of language”: https://www.youtube.com/watch?v=ffllV6-aqWU

Angelo Badalamenti sobre a criação do tema de Laura Palmer: https://www.youtube.com/watch?v=d_rbEthOdf0



Nenhum comentário:

Postar um comentário