David
Lynch, entre Som e Linguagem
Por
Luca Szaniecki Cocco
David
Lynch é sem dúvida um dos mais únicos e interessantes diretores de
sua geração. Se seus filmes são caracterizados por mensagens
crípticas e difíceis de traduzir em palavras, pela mistura entre o
familiar e o estranho, o amoroso e o grotesco, isto é em grande
parte explicado pela sua estranha relação com a linguagem e o som.
Estudaremos então qual a importância e a percepção da Linguagem e
do Som na obra cinematográfica e plástica de David Lynch.
Em
1979, Lynch dirigiu pela primeira vez o que se tornou um clássico do
mundo do cinema: Eraserhead. Desde o príncipio, Lynch ficou
conhecido por nunca esclarecer as suas intenções ao filmar: “As
soon as you put things in words, no one ever sees the film the same
way, and that’s what I hate, you know” (“No momento em que
colocamos coisas em palavras, ninguém mais vê o filme da mesma
maneira, e é isso que eu odeio”). Lynch deseja que o espectador
tire suas próprias conclusões das várias simbologias presentes em
seus filmes. Ora, como ele mesmo diz, isso tem a ver com “pôr as
coisas em palavras”: ao pôr em palavras uma obra visual,
artística, Lynch sugere que há justamente uma superficialidade ao
“traduzir” imagens de sentimentos, sensações e pensamentos em
simples palavras. No processo de explicação, que é uma tradução
objetiva, há um deslocamento da mensagem, justamente o porquê de
Lynch nunca defender uma mensagem única, objetiva. Lynch se recusa a
impor uma mensagem, uma interpretação oficial e sugere que a
“mensagem” de seus filmes deve ser alcançada além da
explicação.
Não
precisamos ir muito longe para começarmos a entender essa distinta
percepção da linguagem na obra de Lynch. O personagem de Gordon em
Twin Peaks, por exemplo, interpretado pelo próprio David Lynch,
esclarece bastante pontos. Como Dennis Lim, autor de uma biografia
(“The Man from another place”) de Lynch, explica:
“So much about Lynch’s fraught relatonship with language is
summed up in that voice, in its unnvervingly high volume and halting
cadence” (“Muito sobre o tenso relacionamento de Lynch com a
linguagem é resumido naquela voz, em seu alto volume e cadência
hesitante”). De fato, o personagem de Gordon tem problemas
auditivos, o que torna os seus diálogos bastante desagradáveis de
escutar, pois são marcados por frases altas e exageradas.
Justamente, para Lynch, palavras não vão muito além de sons
desagradáveis e exagerados.
Em
um ótimo vídeo que explica a relação de Lynch com a linguagem
(colocarei o link abaixo), a autora diz: “For Lynch, the drawing
of an “ant” and the written word “ant” are never co-equal or
necessarily co-descriptive” (“Para Lynch, o desenho de uma
formiga e a palavra escrita “formiga” nunca são co-iguais ou
necessariamente co-descritivas”). Isso lembra bastante o que
Saussure, importante linguista, diz sobre o “signo linguístico”.
De fato, este divide o signo linguístico em dois: um conceito e uma
imagem acústica (que nem sempre é expressada oralmente, pois, pode
estar na forma de diálogo interno). Ele explica então que a relação
entre essas duas entidades é completamente arbitrária: ela não
possui uma relação natural, é uma relação convencional. Não é
uma relação natural que liga o conceito “formiga” à sua
manifestação linguística “for-mi-ga”. Lynch então segue a
mesma linha de raciocínio: no seu caso, o desenho de uma formiga
(manifestação artística) nunca é co-descritiva da palavra em si.
É difícil entender, porém, poderíamos dizer que o desenho de uma
formiga, que nós normalmente associamos à palavra “formiga”,
não é nada além de uma série de linhas que através de convenções
sociais a transformamos em “formiga”. Lynch deseja voltar à
forma original, primitiva, e, sobretudo, psicológica, subjetiva das
linhas que formam o desenho da formiga.
Devido
à artificialidade intríseca à tradução de imagens para palavras,
Lynch é bastante desconfiado e reduz as palavras em instrumentos
convencionais perturbadores. A obra de David Lynch e sua relação
com a linguagem pode ser resumida em poucas palavras: uma
desconfiança da palavra e de seu poder. Em um de seus primeiros
curtas, The Alphabet (1968), por exemplo, uma criança é atormentada
pela aprendizagem do alfabeto, que assombra os seus sonhos, que se
tornam cada vez mais violentos e gráficos (é um curta bastante
sombrio e difícil de assistir). Em um sonho em particular, as letras
do alfabeto aparecem “invadindo” violentamente a cabeça e o
cérebro de uma figura humana que começa a sangrar. Desse modo,
Lynch sugere que há algo de violento na aprendizagem da própria
linguagem, na imposição das palavras como convenções sociais
inevitáveis.
Essa
concepção traiçoeira da linguagem se manifesta em uma série de
cenas e personagens que usaremos como exemplos. De fato, raros são
os filmes de Lynch que não possuem algum tipo de personagem com
vozes distorcidas, distantes ou estranhas, ou cenas constrangedoras
pela sua aparente falta de sentido. Comecemos com seu curta The
Grandmother (1970), curta que também explora o tema da infância,
assim como em The Alphabet, a linguagem é substituída por
sons onomatopaicos e estranhos.
Outro
exemplo seria o próprio Eraserhead
cujos diálogos são
curtos e sem nexo aparente, característica que fica extremamente
clara na famosa cena do jantar. A mesma característica pode ser
vista, por exemplo, em Twin Peaks o Retorno (3a temporada)
que foi marcado por uma série de diálogos “aleatórios” que,
explicitamente, não parecem ter nenhum sentido ou objetivo no âmbito
da história. Se há alguma racionalidade nesses diálogos, esta
racionalidade está confinada na cabeça do diretor, que deixa aberta
a interpretação de seu espectador. Os diálogos de Lynch vão além
da lógica e da racionalidade, e, dessa forma, isso o distingue de
outros mestres do diálogo cinematográfico contemporâneo como
Tarantino ou os irmãos Coen.
Falando
em Twin Peaks o Retorno, Lynch parece ter decidido tomar um rumo bem
mais radical e difícil ao voltar às telonas: em uma (entre várias)
cena particularmente difícil de assistir, por exemplo, Naido (a
mulher misteriosa sem olhos) faz barulhos estranhos na cela de cadeia
e um bêbado as imita continuamente a ponto de enlouquecer os outros
presos e o espectador. Neste exemplo, palavras perdem o seu próprio
sentido e voltam ao estado de sons primitivos e hipnóticos (aspecto
do qual falaremos mais tarde). Twin Peaks é repleto de outros casos
emblemáticos, alguns que já citamos, como o caso de Gordon, outros
que podemos citar agora: o personagem de The
Arm, por exemplo, fala ao contrário, e o
Gigante/Bombeiro, só fala sob formas de enigmas. Aliás, não existe
cena mais genial do que quando Andy é levado para o mundo do
Bombeiro, que lhe mostra uma série de imagens explicando o que ele
deve fazer: nunca nada é explicado por palavras, mas sim por imagens
e sugestões imagéticas. Ironicamente, Andy seria o único capaz de
entender a mensagem e salvar o dia. Palavras nem sempre são a melhor
forma de explicar algo.
O
caso de “Rabbits” é bastante interessante. É uma série
de curtas que brinca, de modo bem experimental, com a criação de
“reality-shows”. Os diálogos são da mais pura
aleatoriedade, sem sentido, com enormes espaços de silêncio entre
uma fala e outra. Muitas falas também são acompanhadas de risadas,
mesmo não tendo nenhuma piada. A piada parece se tornar aquele
universo absurdo e sombrio onde não para de chover e seus habitantes
coelhos precisam conversar para se ocupar e entreter o espectador.
Desse
modo, Lynch reduz a linguagem a um som primitivo, desagradável e tão
enigmático quanto seus filmes. O processo de aprendizagem da
linguagem é um processo violento que impõe uma convenção, uma
interpretação oficial da realidade. Portanto, essa visão das
palavras e da linguagem não é, de modo algum, uma redução de seu
poder. Como dito antes, Lynch desconfia das palavras, porém, também
teme seu poder e influência na escala subjetiva: “Talking-it’s
real dangerous” (“Falar-é muito perigoso”)
Para
estudar o poder das palavras podemos usar um pouco de Jean-Paul
Sartre quando este diz em seu ensaio, “Que é escrever?”, que
“Falar é agir: uma coisa nomeada não é mais inteiramente a
mesma, perdeu a sua inocência” (SARTRE, 1948). Vemos a mesma ideia
de perda de inocência na obra de Lynch, inclusive nos seus trabalhos
fora da esfera cinematográfica. O seu trabalho plástico “Ricky
Board”, é um exemplo emblemático e muito interessante. A obra
consiste em uma sucessão de abelhas mortas, cada uma com um nome
diferente. Parafraseando um pequeno poema inscrito na obra, isso
mostra que ao dar títulos, nomes, ou seja, palavras, a objetos,
estes não são mais os mesmos: “Even though they’re all the
same the change comes from the name” (“Mesmo que sejam todos
iguais, a mudança vem do nome”). Palavras tem poderes, assim como
Brett Littman, curador de uma exposição dedicada a Lynch, diz: “
the act of naming something is never a simple gesture” (“o
ato de nomear algo nunca é um simples gesto”). O ato de nomear, de
pôr coisas em palavras é um gesto muito significativo, pois, esse
ato constitui a nossa interpretação do mundo exterior: o mundo
exterior perde progressivamente sua inocência natural.
Além
disso, a voz e o corpo parecem muitas vezes separadas de seus
personagens. Um exemplo significativo seria a cena de Mulholand Drive
no Clube Silencio onde a música continua a tocar mesmo se a cantora
cai inconsciente no solo do palco (um play-back basicamente).
A voz, o som parece ser algo separado de seu próprio corpo. A
linguagem em si, é algo não-natural, que não pertence ao corpo
humano: talvez um próprio ser “outro”, um parasita.
De
certa forma, Lynch segue uma tradição bastante romântica ao
criticar a artificialidade das palavras: a maneira com a qual elas
traem os sentimentos humanos mais complexos. Poderíamos usar essa
citação de Bergson, por exemplo: “Quand nous éprouvons de
l’amour ou de la haine, quand nous nous sentons joyeux ou tristes,
est-ce bien notre sentiment lui-même qui arrive à notre conscience
avec les mille nuances fugitives et les mille résonances profondes
qui en font quelque chose d’absolument nôtre? Nous serions alors
tous romanciers, tous poètes, tous musiciens. Mais le plus souvent
nous n’apercevons de notre état d’âme que son déploiement
extérieur. Nous ne saisissons de nos sentiments que leur aspect
impersonnel, celui que le langage a pu noter une fois pour toutes
parce qu’il est à peu près le même, dans les mêmes conditions,
pour tous les hommes. Ainsi, jusque dans notre propre individu,
l’individualité nous échappe.” (Bergson, Le Rire
(1900), PUF, Quadrige, p.117-118).
Tradução:
“Quando experimentamos amor ou ódio, quando nos sentimos alegres
ou tristes, é o nosso próprio sentimento que vem à nossa
consciência com as nuances fugazes e mil ressonâncias profundas que
o tornam algo de absolutamente nosso? Seríamos então todos
romancistas, todos poetas, todos músicos. Mas, na maioria das vezes,
percebemos apenas nosso estado de espírito na sua implantação
externa. Nós só percebemos nossos sentimentos no seu aspecto
impessoal, que a linguagem tem sido capaz de notar de uma vez por
todas, porque é quase o mesmo, sob as mesmas condições, para todos
os homens. Assim, mesmo em nosso próprio indivíduo, a
individualidade nos escapa”.
Por
um lado, Lynch segue então essa forma de pensamento bastante
romântica ao enfatizar o caráter impessoal e perigoso no ato de
nomear. Ele defende uma maneira mais artística, mais imagética de
compreender seus filmes, além do meio da pura palavra. Porém, Lynch
vai além desse pensamento ao reduzir a linguagem a um estado
primitivo: puro som. A linguagem se torna som e o som se torna
linguagem, uma linguagem particularmente difícil, enigmática que
permite à transição entre mundos. Não é a toa que toda sua obra
é marcada pelo enorme trabalho em torno dos sons.
Para
continuar, temos que tentar entender a relação entre som, corpos e
geografia no universo de Lynch, relação que Randolph Jordan chama,
em seu artigo “Interférence: la géographie sonore chez David
Lynch” (“Interferência: a
geografia sonora em David Lynch”), de “geografia sonora”.
No começo do artigo, Jordan explica uma história muito interessante
e a interpreta de acordo com o universo de Lynch: muitos fãs de Twin
Peaks invadiram uma propriedade rural na Dakota do Sul (estado
americano) que correspondia a uma coordenada achada em um site
promocional da nova temporada da série, “The Search for the Zone”
(quem viu a série irá entender o título). O site promocional
também continha um três áudios nomeados “electrical_interference”
(1 e 2) e “vortex”, dois sons bastante familiares para os fãs da
série. Final da história: O proprietário teve que pedir
privacidade aos invasores. Jordan tenta mostrar então como isso é
emblemático dessa estranha relação entre a violação de
territórios (a propriedade privada na Dakota do Sul), o som e corpos
na obra de Lynch.
De
fato, ele diz que “a ideia mesma de violação de território é,
de fato, uma metáfora bem escolhida para pensar sobre a maneira como
Lynch delimita o espaço cinematográfico”. O som se torna um meio
pelo qual os corpos passam de um mundo para o outro, uma transgressão
para territórios e mundos estranhos onde a linguagem não passa de
um som primitivo e enigmático. O maior exemplo seria a “Black
Lodge” de Twin Peaks, espécie de purgatório sombrio repleto de
criaturas estranhas e cuja passagem sempre é acompanhada de som e
música sombria (da qual falaremos mais tarde). De fato, essas
passagens entre mundos são muitas vezes feitos com a presença de
uma tecnologia de reprodução ou de transmissão de som, como
vitrolas, por exemplo, mas também por efeitos sonoros, como
interferências elétricas ou sons ambientes.
Na
mesma cena em que a cantora do Clube Silêncio desmaia, mas a música
continua a tocar, a personagem de Betty (Naomi Watts) é pega por
convulsões violentas: essa ilusão do play-back foi tão violenta a
ponto de desconstruir o “tecido mesmo do espaço, do tempo e da
identidade”. Isso mostra que a passagem entre mundos, feita através
do som, principalmente desse som “estrangeiro”, que fica fora do
corpo humano, é uma passagem violenta ao corpo em si. Para passar de
um mundo para o outro é preciso um certo sacrifício físico ou
mental (perda da sanidade). O som pode ser então um viés para a
invasão de um novo território, porém, pode ser também uma invasão
do próprio corpo do personagem. Uma cena bastante emblemática dessa
invasão é quando vemos a garota engolindo um estranho anfíbio no
episódio 8, que já estudaremo em mais detalhes, de Twin Peaks o
Retorno enquanto ouve o rádio, dominado pela voz do misterioso
Lenhador.
Ora,
todo som também precisa de uma espécie de receptáculo. Como vimos,
o som não passa necessariamente pelo corpo biológico, porém, na
obra de Lynch, ele muitas vezes encontra um local em aparelhos
tecnológicos. Podemos dizer com relativa certeza que, além da
desconfiança das palavras, Lynch possui uma visão bastante negativa
quanto aos aparelhos de reprodução de som. Randolph Jordan explica
que as “reações de histeria frente ao tratamento tecnológico da
voz humana” remontam ao século XX quando o “espiritismos levava
explicações sobrenaturais às tecnologias que separam o som do
corpo”. De certa forma, Lynch é dá continuidade a essa percepção
quando enfatiza essa estranha e violenta separação do corpo e do
som/linguagem em seus filmes. Para Lynch, essa separação é o que
leva seus personagens para outros mundos, porém, é também uma
forma de enlouquecer ou “desaparecer”. De fato, a passagem entre
mundos é um processo violento para os personagens que muitas vezes
perdem suas identidades ou sua humanidade (há, de certa forma, uma
radicalização da perda da individualidade da qual Bergson falava).
O personagem de Philip Jeffries, por exemplo, interpretado pelo
grande David Bowie aliás, é o exemplo que muitas vezes essas
viagens não têm volta. No final de sua “vida” (se podemos
chamar aquilo de vida), Jeffries se torna uma chaleira/telefone
gigante preso entre os mundos (no posto de gasolina).
Nessa
perspectiva de passagens de mundo, o aparelho mais usado em sua obra
é a vitrola, vista em praticamente todo filme já realizado por
David Lynch. Além do mais, o que todos esses sons e instrumentos
possuem algo em comum: uma estranha concepção do mundo como um
circuito contínuo. Tanto a forma circular da vitrola, os diálogos
hipnóticos, quanto os “vortex” ou as repetições de sons,
“arranhados” e poemas, sugerem um certo efeito de loop
infinito. Isso mostra que o som sempre esteve muito ligado à própria
linha temporal e existencial dos mundos de Lynch. O final de Twin
Peaks é emblemático dessa relação entre som, linhas temporais e o
infinito. O próprio Phillip Jeffries, que já citamos anteriormente,
em uma cena em particular solta rapidamente um símbolo do infinito
antes dele se tornar um 8.
Agora
faremos uma breve análise do episódio 8 de Twin Peaks o Retorno,
que já foi citado anteriormente, pois, este esclarece muito bem
alguns aspectos que já tratamos aqui e por essa razão merece uma
análise mais aprofundada. O episódio introduz uma longa sequência
de cenas bastante interessantes (não pude achar adjetivo melhor) e
únicas no universo da série. Após um teste nuclear no deserto do
Novo México (aliás, cena incrível e hipnótica), um grupo de
lenhadores misteriosos aparecem do nada, sempre acompanhados por
estranhos barulhos de estática (que Jordan chama de “sons
ameaçadores de arranhados”) e uma “música atmosférica
lúgubre”. Um destes lenhadores acaba atacando e tomando controle
da Rádio KPJK e começa a entoar uma misteriosa poesia para todos os
ouvintes. Vemos então uma jovem menina (que já havia aparecido mais
cedo no episódio) engolindo uma criatura reptiliana nascida destes
testes nucleares (e implicitamente da entidade do mau absoluto, Judy)
enquanto escuta o poema do Lenhador. Essa cena em particular
exemplifica de modo radical o que tentei mostrar: a violação do
corpo pelo som, essa violenta forma de parasitismo sonoro. O próprio
tema de violação do corpo não é novo no universo de Twin Peaks,
como mostra a sobrenatural relação entre Bob, Leland e Laura
Palmer. Voltando ao episódio 8, alguns fãs foram ainda mais longe
na análise: Judy (a entidade do mau absoluto) põe seus ovos no
deserto após os primeiros testes nucleares da região e a utilização
da rádio por um de seus “filhos” (o Lenhador) pode ser uma
metáfora para a expansão da propaganda armamentista da Guerra Fria
pela rádio. Nos dois casos, o som é algo de penetrador, parasita,
que entra e se espalha em seus hospedeiros.
O
som é a textura temporal existencial dos mundos estranhos e
paralelos de David Lynch. Existencial, pois modifica a existência de
seus personagens e a própria estrutura do mundo. E temporal, porque,
como no final de Twin Peaks o Retorno, ele também permite viagens no
tempo. A obra de Lynch deve muito ao trabalho nos sons: efeitos
sonoros bizarros, atmosféricos, elétricos, assustadores.
Eraserhead, por exemplo, não seria um clássico sem os sons
ambientes, os gritos do bebê e os efeitos sonoros nojentos que
contribuem para criar aquele mundo apocalíptico-industrial da
imaginação de Lynch. Além disso, uma das principais
características dos efeitos sonoros lyncheanos é seu caráter
orgânico, digamos. O som parece ser algo vivo, orgânico, uma
continuação e descontinuação do corpo. É um detalhe, realmente,
porém, ajuda na construção dessa atmosfera estranha e nojenta,
principalmente em Twin Peaks e Eraserhead. Isso também pode ser
visto em seus efeitos visuais, que muitas vezes parecem mal feitos
justamente por causa desse caráter orgânico (conferir cena em que
Naido se transforma em Diane para entender o que quero dizer).
Se
Lynch reduz a linguagem ao puro som e vice-versa, ele também faz o
mesmo com a música. Acho que qualquer artigo sobre a obra de David
Lynch merece uma homenagem ao seu trabalho musical, que também pode
ser considerado um trabalho nos sons. A música é som, mas, ao mesmo
tempo é também uma linguagem abstrata extremamente complexa, e
Lynch sabe usar esse aspecto da música com maestria em seus filmes.
A parceria entre Lynch e Angelo Badalamenti, seu compositor
“oficial”, é comparável a outras grandes parcerias musicais no
cinema: Tim Burton e Danny Elfman, Sergio Leone e Ennio Morricone,
Miyazaki e Joe Hisaishi, entre outras. Badalamenti é, assim como
Lynch, um grande construtor de mundos: para o personagem de The Arm
de Twin Peaks, Lynch e Badalamenti criam mundos onde “there is
always music in the air” (música está sempre no ar). Com uma
música extremamente atmosférica, ele é capaz de criar a perfeita
ambientação estranha, misteriosa e, ao mesmo tempo aconchegante e
luminosa do universo lyncheano. Acho que suas duas maiores
obras-primas são as trilhas sonoras de Blue Velvet e da série de
Twin Peaks. Aliás, recomendo muito esse vídeo onde Badalamenti
mostra o processo de criação de uma de suas mais icônicas
composições, o tema de Laura Palmer (porei o link abaixo do
artigo).
Para
concluir, a obra lyncheana é sempre construída a partir do som: o
som é a textura de seus universos. O som, a linguagem, a música são
os materiais que Lynch e Badalamenti usam para construir seus mundos.
O som é um instrumento que atravessa as dimensões da existência e
que pode servir tanto para a confusão, para o sofrimento, quanto
para desvendar os mistérios da vida. De todos os sentidos dentro da
sinestesia lyncheana, o som é, sem dúvidas, o mais importante. O
que caracteriza Lynch é justamente essa valorização e desconfiança
do som e da linguagem, porém, isso se inscreve na sua busca pela
mais legítima manifestação dos sentimentos e impressões
subjetivas. É por essa razão que suas imagens cinematográficas são
tão impactantes, pois, ele sabe manipular e deformar os nossos
sentidos em seu favor, ou seja, para mostrar seus sentimentos e suas
ideias. Isso não quer dizer que torne seus filmes mais inteligíveis,
pelo contrário, porém se transformam em uma experiência mais
impactante. O visual, para Lynch, é sonoro.
Links:
“David
Lynch: The treachery of language”:
https://www.youtube.com/watch?v=ffllV6-aqWU
Angelo
Badalamenti sobre a criação do tema de Laura Palmer:
https://www.youtube.com/watch?v=d_rbEthOdf0
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