1984 e a Linguagem
por Luca Szaniecki Cocco
Aqui estudaremos a importância da linguagem no famoso romance 1984, incarnado pela "novilíngua".
1984
é um romance publicado em 1949 pelo escritor inglês George Orwell,
também conhecido por seu outro romance de distopia “Animal Farm”
e outros textos, como “Homenagem à Catalunha”. Todos conhecem
“Big Brother”, o Ministério da Verdade, a Polícia do Pensamento
(e seu órgão, o Ministério do Amor), O’Brien e outros elementos
clássicos do romance. Mas poucos falam dos outros mecanismos de
controle presentes no livro e de um deles em particular: o controle
linguístico com a novilíngua. Estudaremos aqui qual a relação
entre linguagem e Poder com o exemplo de 1984 e sua novilíngua, mas
também com a ajuda de estudos linguísticos importantes.
A
novilíngua (“newspeak”) nos é introduzida por um personagem,
Syme, colega de Winston, que trabalha no desenvolvimento de novos
dicionários especialmente encomendados por Big Brother e os altos
escalões da sociedade. Syme se orgulha que o dicionário está cada
vez menor: a cada versão, mais palavras são retiradas do
vocabulário oficial. Aliás, antes de prosseguir, logo depois de
conhecermos Syme, o leitor tem direito a alguns pensamentos de
Winston: “Syme será vaporizado. Ele é inteligente demais […].
Um dia ele disaparecerá”.
Todo
o objetivo dessa nova língua, que substituiria a linguagem antiga (o
“oldspeak”, ou seja, o inglês tradicional), é de retirar todas
as palavras que não sejam conformes à ideologia do partido no poder
e de Big Brother. Além disso, o princípio do qual parte Orwell ao
estabelecer essa língua é que ao retirar palavras, o nosso próprio
pensamento é reduzido.
A
questão resume-se a: ao conhecermos menos palavras, pensamos menos?
Pensamentos complexos necessitam palavras complexas? Segundo Orwell
sim. Ao limitar o número de palavras, nosso próprio pensamento é
limitado. Desse modo, os habitantes de Oceania (superestado onde
vive Winston, governado por Big Brother) estão menos aptos e
propícios a se revoltarem pois não conhecem palavras como
“democracia” ou “liberdade de expressão”. Nos termos de
Orwell: “A Novilíngua não foi criada para estender mas para
diminuir o alcance do pensamento”.
Antes
de passar à análise do pensamento orweliano sobre a linguagem, é
preciso se perguntar se realmente existiu uma “língua
totalitária”, ou seja, uma espécie de linguagem comum entre todos
os regimes totalitários, que serviram de inspiração para 1984.
Muitos
defendem que sim. Léa Caresse, em seu artigo "Linguistic traces of totalitarianism in Germany's Red Army Faction: from Stalin's soviet language policy to national socialism" (Traços linguísticos totalitários no Exército Vermelho alemão: da política da língua soviética de Stalin ao nacional-socialismo) explica que na Alemanha nazista, dicionários nazistas
especiais eram publicados, por exemplo, com diversos novos termos
como a “Endlösung” (Solução final). No campo do
discurso, nazistas tinham tendência em usar
superlativos (“heroisch”, heroico ou “episch”,
épico...) ou usar infinitivos no lugar de verbos modais, além
de adicionar prefixos pejorativos para vários adjetivos: o melhor
exemplo seria “undeutsch”, literalmente “não-alemão”, ou,
no contexto do nazismo, não-ariano, o estrangeiro (para mais detalhes, vale a pena dar uma olhada nesse site especializado na análise, na qual me baseio, da linguagem totalitária: https://thelanguageofauthoritarianregimes.wordpress.com/).
Curiosamente,
esse termo é formado da mesma forma que algumas palavras
da novilíngua, como o “uncold” (“não-frio”), que significa
quente ("warm"). A palavra “uncold” faz parte de uma das 3
categorias que Orwell descreve nos seus “Princípios da Novilíngua”.
O vocabulário A correspondia a todas as palavras necessárias ao dia
a dia, porém, dos termos antigos eram retiradas “toda ambiguidade
e de toda nuance”. Ele havia conservado palavras como bom (“good”)
ou forte (“strong”), mas palavras como ruim ou fraco não
existiam mais. Para formar antônimos ou insistir era preciso pôr
prefixos listados pelo dicionário. Assim se forma o “uncold”,
formado por “cold” e o prefixo “un”.
Voltando
ao assunto. Nos discursos nazistas, a impressão era de
constante batalha, com, por exemplo, a repetida utilização
do termo “kampf” (luta, combate) assim como desumanização de seus
inimigos, muitas vezes ameaçados com formulas como: “você está com ou contra nós”. Nesse processo de
desumanização, Hitler, notadamente em seu famoso e polêmico livro
“Mein Kampf” (Minha luta/Minha briga), usava muitos termos
biológicos para descrever os judeus como uma raça inferior.
Outro termo que ele usava com frequência era “Shwein”
(porco).
Enquanto
isso, na União Soviética, Stalin sonhava em uma língua
socialista universal para todo o proletariado. É preciso
também notar que a União Soviética possuía uma enorme
diversidade cultural e étnica, que se manifestava também na
língua. O projeto de uma língua comum também serviria para
unificar todos esses diversos territórios, que eram do império russo, sob o comando bolchevique.
A língua universal passava principalmente pela modificação do
russo: a palavra “tovarishch”, que significava colega de
trabalho em russo, se tornou, talvez o termo mais utilizado e
conhecido na União Soviética, “camarada”. Outras palavras foram inventadas, como “profsoiuz” (“professional
union”). Infelizmente para Stalin, o seu projeto nunca se
concretizou.
Contudo, depois da segunda guerra mundial, durante
a separação da Alemanha, o alemão falado nas duas regiões
era considerado, pelo menos por alemães ocidentais, diferente:
a Alemanha do Oeste definia a língua falada do outro lado do muro de
“sowjetdeutsch”, literalmente “alemão-soviético”. O
alemão-soviético adotou então diversos termos derivados
do jargão marxista-leninista, como “Staatsrat” (“State
council”) ou “Produktionsgenossenschaft” (“agricultural cooperative”). Dentro de “Produktionsgenossenschaft”,
“genosse” era a tradução de camarada, termo tão
usado por soviéticos e nazistas. Havia
também muitas outras palavras que terminavam pelo sufixo “-ismus”, como
“Imperialismus” (imperialismo), “Chauvinismus”(chauvinismo), “Militarismus”(militarismo) e “Sozialismus” (socialismo).
Desse parêntese podemos concluir que sim, havia, como Orwell percebeu,
certas características comuns na fala totalitária. Mas não dá para dizer que o uso desse jargão tenha se tornado uma nova língua. Parece que as ideias do autor inglês faz corresponder a lógica da novilíngua à algumas tendências da linguística.
De
fato, o que podemos chamar de “pensamento linguístico de Orwell”
parece seguir uma lógica pertencente à uma importante teoria da
linguística: o determinismo linguístico, também conhecido como a
forma “forte” da hipótese Sapir-Whorf, que apresentaremos esquematicamente.
A
teoria do determinismo linguístico sugere que a linguagem determina
nossos pensamentos, além de processos como categorização, memória
e percepção. Nessa abordagem, a linguagem então é o elemento fundamental para do
processo de entendimento do mundo à nossa volta. Essa hipótese foi
primeiramente defendida pelo linguista Edward Sapir: “Seres humanos
não vivem sozinhos no mundo objetivo […] mas estão à mercê de
uma linguagem em particular que se tornou o meio de expressão para
sua sociedade”. Benjamin Lee Whorf, aluno de Sapir apenas continuou
sua hipótese, para formar assim a hipótese Sapir-Whorf, mencionada
anteriormente.
Em sua tese, Whorf descobriu diversas diferenças entre algumas línguas
europeias e outras línguas, como o hebreu, o azteca e o maia. Até
mesmo línguas europeias como o português, o inglês e o sueco
possuíam o que ele chamava de “diferenças cognitivas”. O modelo
DIKW ( “data, information, knowledge, wisdom”), do inglês, é,
por exemplo, incompleto no português, que possui muitas mais
nuances, e simplesmente incompreensível para o sueco. “Knowledge”
se separa em dois ao ser traduzido para o português: conhecimento e
o saber. Ao passar para o sueco, conhecimento se divide em “vetande”,
“veteskap” e “kännedon”, e “o saber” se torna “kunskap”.
Essas diferenças constituem, para Whorf, importantes elementos que
diferenciam a percepção do homem. A percepção do inglês é então
bem diferente da do português e do sueco, pois a linguagem teria um
efeito no pensamento segundo Whorf (e Sapir) e que essa diferença entre as línguas teria efeitos diretos na nossa relação com o mundo.
Um outro exemplo importante que Whorf escolhe é o da língua Hopi (língua
ameríndia do Arizona). Este povo não tinha palavras que se referiam
ao tempo, pois o tempo não era visto da mesma maneira que os
europeus: “Na visão Hopi, o tempo desaparece e o espaço é
alterado, então não é o homogêneo e instantâneo espaço
atemporal de nossas instituições ou das mecânicas clássicas newtonianas. Ao mesmo tempo, novos conceitos e abstrações aparecem,
tomando a tarefa de descrever o universo sem referência a tal tempo
ou espaço -abstrações para as quais nossa linguagem não possui
termos adequados”(WHORF).
Fotografia de uma mulher do povo hopi
A
novilíngua parece seguir então a teoria Sapir-Whorf do determinismo
linguístico: ao cortar palavras e conceitos de seus dicionários, o
governo de Oceania pretende diminuir o alcance do pensamento, pois a
língua, a linguagem, possui um papel muito importante nos nossos
processos mentais. Se “liberdade” ou “democracia” são
cortadas do dicionário e desaparecem do vocabulário comum, os
indivíduos dificilmente conseguirão imaginar esses conceitos. De
certa forma, aumenta a legitimidade do governo autoritário pois
nenhum outro modelo existiria nem poderia ser criado do nada.
Porém,
essa teoria, embora tenha sido muito importante para a linguística,
já é criticada desde a segunda metade do século XX. Ora, se a
teoria do determinismo linguístico pode ser criticada, a eficácia da novilíngua de George Orwell pode também ser questionada.
De
fato, para ilustrar a crítica do determinismo linguístico, iremos
usar o exemplo da língua do povo Dani da Nova Guiné (apresentado no seguinte video: https://www.youtube.com/watch?v=_UqxSq19_Aw). Esse povo
possui apenas duas palavras para distinguir cores: “mili”, para
cores frias e sombrias, e “mola”, para cores quentes e luminosas.
Segundo a teoria determinista, o povo Dani nunca seria então capaz
de fazer distinções detalhadas entre laranja, vermelho, azul, roxo,
lilás, etc. Porém, essa afirmação é incorreta. Mesmo não
possuindo termos para laranja, vermelho, azul, roxo ou lilás, o povo
Dani é totalmente capaz de fazer essas distinções, além de que, nada os
impede de criar novas palavras para isso.
Fotografia de um membro do povo Dani
Como
isso é explicado? A falta ou abundância de palavras em uma certa
língua para determinados conceitos, ideias ou objetos, é um reflexo
da cultura de um determinado povo e do que ele valoriza. Povos diferentes
valorizam diferentes coisas, isso não quer dizer que veem o mundo
de outra maneira, mas sim que simplesmente valorizam diferentes
coisas. O povo Hopi, que citamos anteriormente, possui então
palavras abstratas que nós não temos em nossa língua: mesmo
não tendo expressões para a passagem de tempo, ele é muito bem
capaz de perceber essa passagem. O sueco possui distinções de
“knowledge” bem mais complexas que o inglês ou o português. O
povo Dani sabe distinguir um verde-claro e escuro. Porém, dependendo
do que ele valoriza, ele não achará necessário fazer a distinção
entre dois tipos de verde e preferiria usar o seu termo “mili”.
Uma nação que vive na floresta, por exemplo, pode achar essa distinção mais importante e incorporar palavras para realizar essa
tarefa.
Em
seu livro “Language Instinct” (1994), o psicologo e linguista Steven
Pinker defende uma teoria muito interessante que aprofunda as novas
análises da linguística, para além da hipótese Sapir-Whorf. De fato,
Pinker defende que humanos não pensam em inglês, português ou
qualquer outra língua, mas que cada indivíduo possui uma língua
inata de pensamento, que ele chama de “mentalese” (“mentalês”).
Ao falar uma língua, para poder se comunicar, o cérebro humano
traduz essa língua inata em língua falada: “Conhecer uma língua,
então, é saber traduzir “mentalês” em linhas de palavras, e
vice-versa” (PINKER). Pinker também se junta ao linguista Noam
Chomsky ao acreditar na capacidade natural (genética) do homem de
criar construções gramaticais: a teoria da gramática universal.
Pinker (e Chomsky) veem a língua como uma habilidade única ao homem
e que foi criada em um propósito evolutivo como um ser social e
político: inicialmente para resolver o problema de comunicação
entre caçadores e coletores. Pinker compara a nossa capacidade de
linguagem à fabricação de teias pelas aranhas ou à construção
de barragens pelos castores.
"Language Instinct" por Steven Pinker
Pinker
ou Chomsky corresponderiam assim à parte “fraca” (“weak”)da
hipótese Sapir-Whorf: a língua é extremamente importante para a
compreensão do mundo mas não é um fator totalmente determinante.
Se
seguirmos a parte “forte” (“strong”) da teoria Sapir-Whorf, o
determinismo, o projeto da novilíngua seria vitorioso: incapazes de
pensar em novos conceitos, os indivíduos de Oceania nunca seriam
capazes de imaginar novos modelos políticos além do modelo imposto
por Big Brother. Porém, essa teoria é questionada no plano teórico e histórico. A prova histórica é que os regimes totalitários foram derrotados e, no caso da Europa Oriental, continuamente contestados.
Noam Chomsky
Somos
todos capazes de sentir a opressão e a violência, mesmo sem
palavras para descrevê-las, pois cada um de nós possui uma língua
interna própria. Logo, quando várias pessoas sentem a mesma
sensação em “mentalês”, criamos linguagens para poder nos
comunicar. Embora a novilíngua seja bastante significativa,
qualquer indivíduo é capaz de imaginar e criar novas palavras e também novos modelos
políticos: a democracia e a liberdade ainda existem em alguma parte
de nossa mente. A prova é o próprio protagonista, Winston, que,
mesmo sem conhecer as palavras “democracia” e “liberdade”,
decidiu lutar contra Big Brother (mesmo que tenha dado errado) pois a
opressão é uma palavra universal em cada mente humana. Como Henri Bergson
defendia, nossa liberdade não consiste em escolher entre duas ou
várias possibilidades, mas sim em criar novos caminhos ("La Pensée et le mouvant", 1934)
Agora
irei dar um exemplo muito interessante (e de bastante atual) dado por
Miranda Fricker, professora de filosofia, em seu livro “Epistemic
Injustice”. Para isso precisamos entender o que Fricker entende
como injustiça epistêmica. Fricker define o título da sua obra
como um tipo de injustiça onde a contribuição de um indivíduo ao
conhecimento geral da humanidade é limitada. A injustiça epistêmica
é dividida então em dois outros tipos de injustiça. Primeiramente,
a injustiça de depoimento onde o indivíduo é proibido de dar seu
testemunho, de adicionar o seu próprio conhecimento ao conhecimento
geral. O exemplo que Fricker dá é o de Tom Robinson, personagem do
livro “To Kill a Mockinbird”. Este é um homem negro acusado de
ter estuprado uma mulher branca e, ao ser julgado diante uma corte
dos Estados-Unidos rurais, o júri não acredita no seu testemunho por
ser negro. Tom Robinson, por ter sido impedido (e condenado) de
adicionar seu conhecimento ao conhecimento geral, foi vítima do que
Fricker chama de injustiça de depoimento. Há outro tipo de
injustiça que Fricker descreve: injustiça hermenêutica é quando
indivíduos são impedidos de acessar ao conhecimento geral,
conhecimento necessário ao indivíduo para que ele possa entender o
que o cerca.
Injustiça Epistêmica por Miranda Fricker
O
novilíngua, ao tentar limitar o próprio pensamento do indivíduo,
limita a sua contribuição ao conhecimento geral e é então uma
forma de injustiça hermenêutica. Porém, Fricker entrega um exemplo
que contradiz o princípio do novilíngua: o exemplo do assédio
sexual. De fato, por mais incrível que pareça, o próprio termo de
assédio sexual ( “sexual harassment”) não existia na língua
inglesa até os anos 70! Fricker conta a história de Carmita Wood,
uma assistente de laboratório, que, ao pedir demissão depois de
vários casos de assédio por um dos físicos com o qual trabalhava
(Boyce McDaniel), não conseguia descrever a experiência pela qual
passou. Por mais surpreendente que seja, ao assinar sua folha de
demissão e explicar a razão pela qual se demitia, Carmita não via
em canto algum da folha a opção de assédio sexual. Ora, isso não
era um defeito do laboratório em si: o termo simplesmente não
existia na legislação trabalhista. Carmita então contratou um advogado,
Lin Farley, que, ao perceber que várias mulheres passavam pela mesma
situação, testemunhou na Comissão de Direitos Humanos para
Mulheres e Trabalho de Nova Iorque, e pela primeira vez na história
apareceu o termo “assédio sexual”.
Tom Robinson no filme "To Kill a Mockingbird"
Afinal,
como isso contradiz com o objetivo da novilíngua? Mesmo se Carmita e
outras mulheres não tinham palavras para descrever o que sentiram,
isso não as impediu de pensar e de defender-se. No final, um novo
termo foi inventado e integrado na língua. Mais uma vez a novilíngua
teria se provado um fracasso.
Para
concluir, a teoria linguística de Orwell é muito interessante porém
possui limites que muitos pesquisadores já mostraram ao longo da
segunda metade do século XX. A novilíngua pode vir a ser um perigo,
sem dúvida, mas não é totalmente eficaz. Winston, o protagonista
de 1984, não conhece os termos “liberdade de expressão” ou
“democracia” mas foi muito bem capaz de se revoltar contra Big
Brother pois a opressão é um sentimento que todo homem é capaz de
sentir. Quer dizer, como lembrava Maurice Merleau-Ponty, em sua "Nota sobre Maquiavel" (1948), o poder nunca é totalmente democrático mas tampouco chega a ser definitivamente totalitário.
Winston Smith, protagonista de 1984
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