sábado, 24 de agosto de 2019

Manifesto da Queda do Céu


Manifesto da Queda do Céu
por Luca Szaniecki Cocco

Para fazer dupla com o Manifesto da Balbúrdia, nos manifestamos agora contra os recentes acontecimentos que dizem respeito ao Meio-Ambiente.


Nessa segunda dia 19 de agosto, São Paulo conheceu um fenômeno meteorológico único: em plena tarde (por volta das 15h), o céu ficou escuro de nuvens e o dia tornou-se noite. Manaus e Porto Velho, assim como outras cidades da região Norte, Centro-Oeste e Sudeste também absorveram as consequências do recém-proclamado “Dia do Fogo” (dia 10/11 de agosto), data na qual, em apoio às declarações soberanistas do presidente após a suspensão de investimentos alemães e noruegueses, vários atores rurais decidiram realizar uma grande queimada. As consequências diplomáticas (a repercussão internacional), econômicas (desvio de voos em Rondônia, suspensão de investimentos...) e sanitárias (a poluição do ar, da terra e da água e seus efeitos na saúde humana...) ainda esperam concretizações.

Juntando com uma frente fria, as partículas oriundas da fumaça produzida em incêndios florestais provocaram uma verdadeira “Queda do Céu”, expressão do recente livro do líder indígena Davi Kopenawa com o antropólogo Bruce Albert. Para aqueles que ainda tinham dúvidas se tal fenômeno era nem sequer fisicamente possível, a ocorrência já foi confirmada pelos principais institutos meteorológicos brasileiros e internacionais (a NASA, inclusive), assim como as grandes mídias. Contudo, é também preciso dizer que tais incêndios não ocorrem apenas em terras brasileiras (Acre e Rondônia principalmente), mas também na Bolívia e no Paraguai.



Tal evento apocalíptico nos serve de base para um manifesto mais amplo no objetivo de ressaltar a desastrosa política ambiental do atual governo. Porém, assim como o fizemos no “Manifesto da Balbúrdia”, não iremos apenas nos concentrar no “anti-bolsonarismo”, mas também nos interessaremos em criticar os últimos governos e mostrar o poço no qual se encontra a política ambiental nacional nos últimos anos. Podemos começar dividindo as mais recentes medidas ambientais em duas principais frentes: a frente do Ministério do Meio-Ambiente e a frente do Ministério da Agricultura.

Começando pelo mais óbvio, o Ministério do Meio-Ambiente de Ricardo Salles parece adorar criar polêmicas semanalmente em suas medidas. Poderia até ser piada se não fosse trágico o fato de nosso Ministro ter sido condenado pelo Ministério Público de São Paulo por fraude ambiental: ele teria alterado ilegalmente o Plano de Manejo da Área de Proteção Ambiental (APA) da várzea do Rio Tietê, com a intenção de beneficiar interesses privados quando estava na frente da chapa ambiental do ex-governador Geraldo Alckmin. Isso sem contar que Salles é um seguidor de Olavo de Carvalho que já pronunciou-se duvidando sobre o aquecimento global (o atual ministro das Relações Exteriores também nega o aquecimento global e o trata como uma ilusão criada pelo "marxismo cultural").

Passemos então aos escândalos. Mais recentemente, o presidente pressionou a demissão do diretor do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais) por ter divulgado dados sobre o desmatamento e sob o argumento que tal informação “prejudica a visão do país”, como se uma nuvem apocalíptica de fumaça e uma demissão arbitrária pudessem trazer uma visão positiva. Diversas instituições já se manifestaram contra a decisão: Douglas Morton (NASA) diz que é uma situação “significativamente alarmante” e “reflete como o atual governo brasileiro encara a ciência”. As gafes do presidente enchem nossos noticiários sem que o próprio perceba que não são dados que ferem nossa imagem internacional, e sim as suas intervenções sugerindo que ir ao banheiro uma vez a cada dois dias pode salvar o meio-ambiente.

Bolsonaro parece ter esquecido o azul e o verde de nossa bandeira, deixando apenas o amarelo de suas amareladas internacionais e as estrelas dos estados que Bolsonaro usa como se fossem graduações na academia militar. Ele esquece, porém, que nunca será mais que um capitão, e capitães não possuem estrela alguma.

Além disso, o Ministério já propôs uma longa lista de medidas extremamente polêmicas: a transferência da Funai e do Serviço Florestal Brasileiro para o Ministério da Agricultura, a Agência Nacional de Água para o Ministério do Desenvolvimento Regional, a extinção da Secretaria de Mudança Climática, o assédio aos fiscais do IBAMA, a redução do Conselho Nacional do Meio-Ambiente, a possível eliminação do ICMbio, a entrega de diversos cargos de chefia para militares e policiais militares, a questão do arquipélago de Abrolhos e sua liberação para a extração de petróleo, a saída do Acordo de Paris (acabaram recuando), o corte de metade do orçamento do Prevfogo e 5,5 milhões no ICMbio para a fiscalização e combate a incêndios, etc.

Medidas que, segundo os ex-ministros do Meio-Ambiente que se encontraram nesse ano para discutir o futuro da pauta, constituem uma “política sistemática, constante e deliberada de desconstrução e destruição das políticas meio-ambientais”, transformando o país em um “exterminador do futuro” nas palavras de Marina Silva, sem dúvidas a melhor ministra do Meio-Ambiente que este país jamais teve e cuja defesa ainda lembra o vigor de Chico Mendes. 

Internacionalmente, todas essas medidas e propostas representam uma grave perda de credibilidade e poder de articulação em um mundo que está começando a levar a sério a questão ambiental, assim como fechamentos de mercados (ver o caso da Alemanha e da Noruega que suspenderam respectivamente o repasse de 155 e 133 milhões de dólares para o Fundo Amazônia).

Depois dos escândalos, passemos aos dados, que estão longe de serem “mentirosos” ou “aparelhados”. Segundo o Inpe, graças aos estudos por meio do Deter (Detecção do Desmatamento em Tempo Real), entre agosto de 2018 a julho de 2019, cerca de 6,8 milhões de km² poderiam ter sido desmatados, ou seja, as suspeitas de extração de madeira estão em uma área 40,5% maior que a média dos três períodos anteriores. O total representa um aumento de 278% dos alertas de desmatamento em julho de 2019 comparado ao mesmo mês de 2018. O aumento é de mais de 80% para o número de focos de queimadas para o período de janeiro a agosto entre 2018 e 2019: o total foi mais de 67 mil pontos, representando o maior índice desde 2013 (primeiro ano em que há dados informados do período similar). A floresta Amazônica representa a maior parte desses focos (51,9%), seguida do bioma do Cerrado, outro ambiente muito ameaçado. Em termos de estados, o Mato Grosso é o campeão (mais de 13000 focos, ou seja, 19% do total nacional), seguido pelo Pará (9000). O aumento comparado a 2018 foi de 260, 198, 188, 176 e 173% para Mato Grosso do Sul, Rondônia, Pará, Acre e Rio de Janeiro (para lembrar que a Mata Atlântica também é ameaçada) respectivamente.



É preciso agora ressaltar algumas coisas. Primeiro, de fato estamos em um período mais seco, o que poderia explicar (em parte) os incêndios do Cerrado. Por outro lado, a Amazônia não possui tal fenômeno, e todo incêndio silvestre é sim causado pelo homem e faz parte do processo de desmatamento. Em segundo lugar, gostaria de repetir que 6,8 milhões de km² poderiam ter sido desmatados. Em uma recente conversa entre Salles e Ricardo Galvão (ex-diretor do Inpe) na GloboNews, o ministro de fato insistiu no fato de que dados baseados em alertas não necessariamente representam a realidade. Neste ponto, o ministro está até certo (e sinceramente, até levou a melhor na discussão com Galvão), porém, como vários especialistas como Carlos Nobre (Academia Brasileira de Ciências) explicam, a tendência dessas estimativas é subestimar a realidade, ou seja, é provável que o número seja muito maior que 6,8 milhões de km² e de 278%. Para resumir: mais um tiro no pé do ministro para o ouvinte atento.

Em resposta às acusações de Salles no que diz respeito ao “sensacionalismo” das matérias jornalísticas, podemos dar alguns fatos: Rondônia se encontra atualmente em um estado de calamidade pública devido aos vários dias de incêndios e já teve que desviar voos e o Acre já liberou um decreto de alerta ambiental, pedindo a ação integrada dos órgãos ambientais estaduais, municipais, o Ministério Público Estadual, instituições do terceiro setor e da população para o combate às queimadas.



Quanto às acusações de “aparelhamento ideológico”, elas são mais interessantes. O argumento clássico do bolsonarismo contra os dados divulgados pelo Inpe ou qualquer outra instituição que lhes faça oposição possui certa base: a total falta de autocrítica da oposição liderada pelo PT. No caso do Inpe, Salles acusa Galvão de ter apenas divulgado tais dados por não estar de acordo ideologicamente com o governo e que tais dados deveriam ser vistos dentro de uma tendência mais ampla que já começara com os últimos governos (implicitamente fazendo referência aos governos de Dilma Rousseff principalmente). Como dito antes, embora tenha certa razão, tais acusações são pouco sólidas em uma leitura mais atenta: Galvão entrou como diretor do Inpe em 2016, no ano em que Dilma Rousseff sofreu um impeachment.

De qualquer forma, por não participarmos da estúpida polarização entre petistas e bolsonaristas, vamos também criticar os últimos governos. Mario Mantovani (Fundação SOS Mata Atlântica) foi bem claro na época no que diz respeito à política ambiental de Dilma: “pior governo da história” para o meio-ambiente. Talvez tenha dito isto precipitadamente se considerarmos os mais recentes desastres, mas devemos admitir que a política ambiental conhece uma crise desde os primeiros anos do governo Dilma, começando com a usina de Belo Monte, a questão indígena e Kátia Abreu (a "motoserra de ouro") como ministra da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Além disso, também podemos citar o baixo orçamento do Ministério, o desmantelamento das Unidades de Conservação e a PEC-215 que transfere do Executivo para o Legislativo a palavra final sobre a demarcação de terras indígenas. Não apenas pretendemos criticar os atos passados, mas também a atual política de oposição, completamente impotente e sem saber o que dizer além de palavras vazias, reduzindo a situação a uma mera guerra contra os ultraminoritários negacionistas climáticos como Olavo de Carvalho. A questão climática vai muito além da guerra cultural.

E ainda nem falamos sobre o Ministério da Agricultura. Este também está fazendo seu trabalho: o Ministério liderado por Tereza Cristina da Costa (também conhecida como a "mulher veneno" da bancada ruralista) liberou mais de 290 pesticidas, 27% a mais que o mesmo período do ano passado e passou um Projeto de Lei que pretende flexibilizar ainda mais os critérios. A lista dos fabricantes inclui algumas brasileiras como Cropchem e Ouro Fino, mas também internacionais como Arysta Lifescience, Nufarm, Adama Agricultural Solutions, Syngenta, BASF, Sumitomo e a famigerada Monsanto. Colocando dentro de uma perspectiva maior, o uso de pesticidas no Brasil aumentou de 770% entre 1990 e 2016 segundo a ONU, mas o atual governo está acelerando o processo. O último relatório da Anvisa mostrou que 20% das amostras continham resíduos acima dos níveis permitidos (e sequer fez testes para o glifosato, pesticida campeão no Brasil e proibido em diversos países ao redor do mundo). Segundo o GreenPeace, 40% dos pesticidas brasileiros são “altamente ou extremamente tóxicos” e 32% não são permitidos na União Europeia. Não são apenas perigosos para seres humanos (alguns são potencialmente cancerígenos), mas também para a vida animal, em particular para as abelhas. Meio bilhão de abelhas morreram em 4 estados sulinos nos primeiros meses do ano, a maioria tendo traços de Fipronil, inseticida proibido na Europa e classificado como possível cancerígeno para humanos segundo a Agência de Proteção Ambiental dos Estados-Unidos.

Diante de tal situação, é equivocado e perigoso dizer que estamos sem opção. Primeiro, devemos usar o contexto internacional em nosso favor. Nossas florestas, em particular a Amazônica, são o “pulmão do mundo” e devemos usar a visibilidade que elas possuem para que o governo sinta a pressão internacional. A questão do fundo Amazônia deve ser apenas o começo da pressão. Além disso, o mundo conhece uma nova onda de movimentos pelo meio-ambiente liderados por jovens estudantes como Greta Thunberg. Devemos então usar essas duas dinâmicas: aumentar a pressão internacional e nos juntar a um dos movimentos mais originais da história. Nacionalmente, ainda temos muito trabalho pela frente: tanto a pauta de educação (ver Manifesto da Balbúrdia) quanto do meio-ambiente devem se transformar nos dois fronts principais da oposição, pois, são duas questões que reúnem muito mais que as pautas vazias, como a do “fascismo” ou os escândalos semanais oriundos das declarações presidenciais.

São duas pautas que reúnem em um país tão dividido e que permitem ir além da guerra cultural entre olavetes e lulistas. Para isto, devemos valorizar mais nossos cientistas e especialistas (os ex-ministros do Meio-Ambiente, por exemplo) e formar uma oposição original que consiga ir além das pautas do PT e seus satélites partidários (Psol, PCdoB) e militantes. Tais pautas constituem o principal empecilho e devem ser consideradas separadamente: de fato, a sua presença nas manifestações da educação, por exemplo, serviu como argumento para o governo, proclamando que eram todos “aparelhados”. Devemos lembrar que o PT foi fundado por duas faces: Lula (o sindicato, a indústria) e Chico Mendes (o ambientalista, o campo), e foi este mesmo PT que escolheu esquecer a sua segunda face ao longo do governo Dilma, abrindo alas para Temer e Bolsonaro.



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