por Luca Szaniecki Cocco
Cartaz de maio de 1968
Manifesto
da balbúrdia
Balbúrdia:
substantivo feminino. 1: desordem barulhenta; vozearia; algazarra,
tumulto. 2: situação confusa; trapalhada, complicação
Diante
de uma péssima semana para a educação nacional, queria repudiar a
decisão dos cortes decididos pelo MEC contra as instituições
federais ao redor do país. Alguns dias atrás, o ministro Abraham
Weintraub anunciou cortes orçamentários nas três universidades
citadas acima sob o critério que promoviam “balbúrdia” e tinham
“baixo desempenho”. O corte foi de 38,2 milhões para a UnB, 37,3
para a UFBA e 44 para a UFF. Desde a decisão, no lugar de recuar, o
Ministério avançou ainda mais em suas medidas orçamentárias,
estendendo o corte para todas as instituições federais de ensino
superior, mas também de outros níveis da educação.
Primeiramente,
o critério de balbúrdia não se inscreve em qualquer quadro técnico
que poderia justificar tais cortes. Segundo, o baixo desempenho
também não parece justificado se considerarmos que as três
universidades estão entre as 11 instituições brasileiras que mais
aumentaram o número de artigos científicos entre 2008 e 2017 (dados
da plataforma de produção acadêmica Web of Science) e estão entre
as 20 melhores do país.
Dessa
forma, é difícil acreditar, apesar do suposto discurso
“anti-ideologia”, que a verdadeira razão do corte não tenha
sido ideológica. Dito isto, é claro que não é um caso sem
precedentes se tomarmos em conta que os investimentos em educação
diminuíram de 56% nos últimos 4 anos e o corte deveria fazer parte
do contingenciamento geral do governo federal em torno de 30 bilhões,
sendo 5,8 bilhões a parte que o MEC deveria respeitar, mas que acaba
de aumentar de mais 1,6 bilhões com a extensão para todas as
instituições federais. Porém, a questão toda não foi justificada
tecnicamente e procedeu de maneira violenta e podendo-se provar
desastrosa para um número gigantesco de alunos.
No
mesmo caminho, acho importante ressaltar que o assalto aos cofres da
educação não é algo exclusivo ao governo Bolsonaro nos últimos
anos e que, de fato, começou no próprio governo Dilma. Em 2015, no
mesmo ano do slogan “Pátria Educadora”, o governo cortou cerca
de 10,5 bilhões do orçamento da Educação. Somente o Fies, cortou
1,7 bilhão em relação a 2014. Menos de um ano depois de sua
reeleição em 2014, Dilma já havia reduzido em 23% o orçamento e
em março de 2016 anunciou um novo corte de 21 bilhões dos
Ministérios da Educação e do Planejamento. Novas vagas do Pronatec
caíram 57% entre 2015 e 2014. Tudo isto dentro de um plano de
contingenciamento do ministro da economia, Joaquim Levy, onde a
educação deveria representar 13% dos quase 70 bilhões do bloqueio
do Orçamento da União. Quer dizer, é inegável que não podemos
culpar apenas Bolsonaro pela redução de 56% dos investimentos em
educação nos últimos 4 anos, embora este esteja apenas
aprofundando o buraco. Para dar alguns números apresentados pelo
Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal,
entre 2014 e 2018, o orçamento da educação passou de 117,3 a 103,5
bilhões, mais especificamente, os orçamentos do ensino superior,
básico e profissional, diminuíram respectivamente de 15, 19 e 27%.
Enfim, faz-se importante ressaltar esse fato e talvez utilizar uma
frase do jornalista Rafael Oliveira em um artigo de 2016 no Huffpost
Brasil: “Onde o fascismo surge apontado, quem direciona o dedo
parece vestir a mesma suástica que critica”. Como também ressalta
em seu artigo, houve muita pouca mobilização acadêmica.
Enfim,
voltando para o recente corte do ministro Abraham Weintraub, alguns
especialistas já estão dizendo que a decisão unilateral viola o
Artigo 207 da Constituição: “as universidades gozam de autonomia
didático-científica, administrativa e de gestão financeira e
patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão”. Além de que, o Congresso tendo
aprovado um certo orçamento no final do ano passado, uma decisão
dessas não deveria ser decidida sem passar por essa instituição.
Nina Ranieri, coordenadora da Cátedra da UNESCO de Direito à
Educação da Faculdade de Direito da USP, ressalta que “se o
governo entende que há dificuldades financeiras é necessário
conversas com os reitores das universidades para analisar de quais
maneiras se pode estabelecer outras metas. Não é permitido, no
entanto, cortar linearmente o recurso e muito menos baseado em uma
motivação vaga e inespecífica”. A motivação, a balbúrdia, que
não passa de motivação ideológica, infringe a Lei do Procedimento
Administrativo (Lei n9.784/99) que determina a obrigação de que
todas as ações do Executivo sejam acompanhadas de justificativas
técnicas, como um estado. Enfim, a decisão unilateral foi tomada
diante de uma total falta de diálogo e de respeito a Lei.
A
outra suposta justificativa do governo seria que, graças ao corte,
poderiam direcionar mais recursos à educação básica. Nas palavras
de Bolsonaro em uma entrevista para a SBT: “A gente não vai cortar
recurso por cortar. A ideia é investir na educação básica”.
Mais uma balbúrdia do governo. De fato, ele congelou mais recursos
da educação básica do que das universidades federais. De acordo
com a pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das
Instituições de Ensino Superior (Andifer), usando dados públicos
do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do MEC e a pedido
da Folha de São Paulo, o ministério congelou ao menos 2,4 bilhões
previstos em educação infantil, contra 2,2 bilhões das
universidades. Também houve congelamento no orçamento para
construções em unidades do ensino básico de cerca de 146 milhões
de um total de 265. Até mesmo nas modalidades em teoria defendidas
pelo atual MEC (ensino técnico e a distância), o Pronatec teve que
congelar 100,45 milhões de seu orçamento (ou seja, sua totalidade)
e a Mediotec (ensino médio simultaneamente com ensino técnico) 144
de seus 148 milhões. Na compra de mobiliário e equipamentos para
escolas, capacitação de servidores, educação de jovens e adultos
(EJA) e ensino em período integral também houve um pequeno
congelamento. Finalmente, houve uma pequena, porém chocante,
contenção em programas de permanência de crianças de baixa renda
em escolas, como na merenda (corte de 150 mil) e transporte escolar
(19,7 milhões). Por mais importante que seja, de fato, a educação
básica, o governo não se sustenta nesse discurso, como mostrei
acima. E mesmo que se sustentasse, não basta negligenciar totalmente
a importância do ensino superior, pois, os dois são complementares.
Como diz Mônica Gardelli, superintendente do CENPEC (Centro de Estudos e
Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária): “Nossa
maior defesa é por mais recursos para a educação básica, mas não
queremos que sejam retirados das universidades […] Para onde vai
esse menino do ensino médio de hoje, se não houver universidades
nos próximos anos?”.
Se
a educação era a prioridade inicial do governo Bolsonaro, ele
parece muito mais preocupado em perdoar as dívidas da área rural
enquanto também corta o orçamento da proteção ambiental do que
investir nela.
Ou
seja, a decisão do MEC não parece se sustentar em nada, e se
inscreve em um discurso hipócrita, violento e conspiratório (vale
lembrar que segundo o ministro da educação, grande parte do “topo”
do país é dirigido por comunistas), além de anti-constitucional.
Nos resta então a única suposta justificação, que eles nem mesmo
admitem, que é a ideológica. Quanto a essa, gostaria de dizer que a
estratégia é péssima. De fato, mesmo que as universidades fossem
de fato um antro para comunistas, cortar o orçamento dessa forma é
uma péssima estratégia ideológica e apenas criará “novos
comunistas” que se vem ameaçados por esse governo. Em outras
palavras, até do ponto de vista ideológico, o corte arbitrário é
um tiro pela culatra. Enquanto isso, o “ideólogo sem-ideologia”
Olavo de Carvalho, já até se posicionou. Em um vídeo recente (de
quando o corte ainda era reservado as áreas de filosofia e
sociologia), Olavo ataca um dos manifestos que circularam na ocasião
e conclui se dirigindo ao autor do manifesto que criticou, professor
de filosofia, dessa maneira: “Vocês não apenas devem cortar a
verba das suas faculdades, mas vocês deveriam ser obrigados a
devolver o que já gastaram”, se referindo à produção
intelectual do professor, principalmente destinada à “Teoria
Crítica” que, para Olavo, é a “mesma merda” que marxismo
cultural. (Link para o vídeo
https://youtube.com/watch?v=RSdumubOlaU).
Abraham e Olavo não parecem realmente se preocupar com a
democratização da educação, mas apenas com uma limpeza
ideológica, muitas vezes personificada na imagem de Paulo Freire.
Para citar outro importante ator na educação, Darcy Ribeiro: “A
crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.
Quais
são os efeitos desses cortes?
Em
uma universidade como a UFMG, por exemplo, que perderá 30% de seu
orçamento, isso significa um corte nos serviços básicos como água
e luz, não havendo dinheiro para compra de suprimentos usados em
salas de aula e laboratórios. Segundo a reitora, Sandra Regina
Goulart, 215 milhões são usados apenas na manutenção,
investimentos com pesquisa e pagamento de terceirizados, ora o corte
será de 65 milhões. Apenas de terceirizados, a UFMG possui 4 mil.
Agora imaginem isso multiplicado pelas 12 instituições federais do
Estado. E agora, imaginem isso multiplicado pelo país. Ou seja, o
corte também pode aumentar a grave crise de desemprego também.
Continuando na área da educação, a UFMG possui muitos
laboratórios, 400 apenas no Instituto de Ciências Biológicas que
depende completamente do fornecimento de luz para manter os insumos
nos freezeres. O instituto, contradizendo o argumento do baixo
desempenho do MEC, possui o maior número de patentes de medicamentos
no país e se posiciona em 13a
posição
no ranking mundial. No departamento de zoologia, o corte pode
representar a perda de espécies tão valiosas quanto as queimadas no
Museu Nacional no Rio. Isto multiplicado a totalidade do país pode
representar perdas astronômicas em termo de desempenho, pesquisa,
investimentos, empregos, precariedade de infraestrutura, etc, um
verdadeiro desastre.
No
Rio, o colégio Pedro II - a mais antiga instituição federal de
ensino básico no Brasil - e o Cefet sofrerão cortes de 30 a 40%. O
colégio Pedro II registrou um bloqueio de 18.680 milhões (36,37%),
o que poderá significar, para o reitor Oscar Halac, a interrupção
prematura das atividades: “Se o corte orçamentário for
sacramentado, a instituição não terá condições de funcionar”.
A estimativa é de interrupção em agosto. Quanto ao Cefet, o corte
chega a 39% do orçamento, ou seja, cerca de 17 milhões, conseguindo
se manter até outubro. Nas palavras de Jeronimo Silva, representante
dos institutos federais, o presidente do Conselho das Instituições
da Rede Federal de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica
(Conif): “Com isso, o nosso orçamento volta a ser o que era em
2008 e 2009. Temos o dobro do número de campi pelo Brasil em
comparação a 2008. O número de alunos atendidos é duas vezes
maior […] estamos crescendo e o orçamento, caindo”. Quanto a
UFRJ, maior universidade federal do país, o corte atingiu o patamar
de 41%, quer dizer, 114 milhões. Segundo o reitor Roberto Leher, é
como se “o fim do ano tivesse sido antecipado”.
Por
um lado, o cenário parece catastrófico, porém, esse não é meu
objetivo aqui. Com a ajuda do meu título, quero tentar expor uma
opção, uma saída, uma estratégia.
Em
primeiro lugar, a falta de uma verdadeira justificação fora da
justificação ideológica, o MEC abriu uma brecha para ser atacado.
De fato, pelo lado judicial e político, vários atores já estão
agindo contra as medidas. Tabata Amaral, por exemplo, já protocolou
um requerimento de informação solicitando ao ministro que esclareça
o critério de “balbúrdia”. A OAB também já afirmou que
acionaria o Supremo Tribunal Federal por temer a violação da
autonomia universitária. O presidente do conselho da OAB, Felipe
Santa Cruz, já se manifestou contra: “a gota d’água num cenário
de perseguição ideológica que põe em risco a autonomia
universitária prevista na Constituição”. O partido Rede e
Sustentabilidade também já acionou o STF para que os cortes sejam
suspensos.
Por
outro lado, apesar dessa situação, o momento é oportuno. De fato,
não podemos negar que dentro de uma crise mais generalizada, a crise
na educação é particularmente grave, tanto no nível básico
quanto superior. Se o governo pretende planejar um “tornar-se UERJ”
do conjunto de instituições federais ao redor do país, temos que
tirar dessa experiência uma séria e honesta reforma e renovação
na educação. Faço aqui referência ao sucateamento da UERJ que se
encontrou em total precariedade, sem poder nem mesmo pagar seus
funcionários (professores, pessoal da limpeza...) por conta da crise
econômica no Rio de Janeiro e presto minhas mais sinceras homenagens
a todos os que conseguiram superar e ainda lutam contra essa fase de
crise. Enfim, se a balbúrdia é um aumento da produção acadêmica,
do desempenho, do diálogo e da renovação, devemos criar uma
educação da balbúrdia. E, ao contrário dos catastrofistas, há
sim vários exemplos a seguir. Tabata Amaral, por exemplo, fez parte
do “Mapa do Buraco”, em que expõe as várias dificuldades do
setor educacional, assim como exemplos positivos ao redor do país. O
momento é oportuno para revisitar nossos princípios e reformar
novamente a educação, por dentro, além de melhor valorizar as
descobertas acadêmicas. Não temos mais grandes pedagogos como Darcy
Ribeiro no poder, e nós devemos aprender a tirar proveito disso. Uma
reforma interna e subjetiva da educação. Além disso, se realmente
quisermos mobilizar contra essas medidas, temos que pensar a
mobilização pela educação fora dos aparelhamentos partidários,
pois, o direito a educação parte de um valor que é muito superior
à polarização entre comunistas e bolsonaristas, coxinhas e
petralhas, entre esquerda e direita: a justiça social.
Para
concluir, devemos dividir a balbúrdia em dois, uma balbúrdia para o
governo e outra para as universidades. Primeiramente, tomando a
segunda definição do substantivo balbúrdia, é preciso constatar
que a única situação confusa e trapalhada na educação neste
momento é a ineficácia da atuação do ministério liderado por
ministro que não passa de um economista financeiro que não entende
absolutamente nada do assunto e que persiste na sua total
imaturidade. Além de que, essa situação confusa, que já havia se iniciado quando Velez ainda era ministro, nos faz apenas perder tempo em que não podemos perder nem um segundo.
Em segundo lugar, tomando a primeira definição, está na hora de uma mobilização barulhenta que fará jus ao critério da balbúrdia e criar uma verdadeira educação da balbúrdia, ou seja, uma educação do diálogo, da mobilização, da apropriação de espaços, etc. Para além das trincheiras da resistência, a educação precisa ser espaço de criação e ação, da balbúrdia.
Em segundo lugar, tomando a primeira definição, está na hora de uma mobilização barulhenta que fará jus ao critério da balbúrdia e criar uma verdadeira educação da balbúrdia, ou seja, uma educação do diálogo, da mobilização, da apropriação de espaços, etc. Para além das trincheiras da resistência, a educação precisa ser espaço de criação e ação, da balbúrdia.
Se
eles querem balbúrdia, eles a terão.
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