segunda-feira, 6 de maio de 2019

Manifesto da balbúrdia

Manifesto da Balbúrdia
por Luca Szaniecki Cocco 

Um pequeno manifesto contra os atuais cortes na Educação e a apresentação de uma saída.


                                                              Cartaz de maio de 1968


Manifesto da balbúrdia


Balbúrdia: substantivo feminino. 1: desordem barulhenta; vozearia; algazarra, tumulto. 2: situação confusa; trapalhada, complicação

Diante de uma péssima semana para a educação nacional, queria repudiar a decisão dos cortes decididos pelo MEC contra as instituições federais ao redor do país. Alguns dias atrás, o ministro Abraham Weintraub anunciou cortes orçamentários nas três universidades citadas acima sob o critério que promoviam “balbúrdia” e tinham “baixo desempenho”. O corte foi de 38,2 milhões para a UnB, 37,3 para a UFBA e 44 para a UFF. Desde a decisão, no lugar de recuar, o Ministério avançou ainda mais em suas medidas orçamentárias, estendendo o corte para todas as instituições federais de ensino superior, mas também de outros níveis da educação.

Primeiramente, o critério de balbúrdia não se inscreve em qualquer quadro técnico que poderia justificar tais cortes. Segundo, o baixo desempenho também não parece justificado se considerarmos que as três universidades estão entre as 11 instituições brasileiras que mais aumentaram o número de artigos científicos entre 2008 e 2017 (dados da plataforma de produção acadêmica Web of Science) e estão entre as 20 melhores do país.

Dessa forma, é difícil acreditar, apesar do suposto discurso “anti-ideologia”, que a verdadeira razão do corte não tenha sido ideológica. Dito isto, é claro que não é um caso sem precedentes se tomarmos em conta que os investimentos em educação diminuíram de 56% nos últimos 4 anos e o corte deveria fazer parte do contingenciamento geral do governo federal em torno de 30 bilhões, sendo 5,8 bilhões a parte que o MEC deveria respeitar, mas que acaba de aumentar de mais 1,6 bilhões com a extensão para todas as instituições federais. Porém, a questão toda não foi justificada tecnicamente e procedeu de maneira violenta e podendo-se provar desastrosa para um número gigantesco de alunos.

No mesmo caminho, acho importante ressaltar que o assalto aos cofres da educação não é algo exclusivo ao governo Bolsonaro nos últimos anos e que, de fato, começou no próprio governo Dilma. Em 2015, no mesmo ano do slogan “Pátria Educadora”, o governo cortou cerca de 10,5 bilhões do orçamento da Educação. Somente o Fies, cortou 1,7 bilhão em relação a 2014. Menos de um ano depois de sua reeleição em 2014, Dilma já havia reduzido em 23% o orçamento e em março de 2016 anunciou um novo corte de 21 bilhões dos Ministérios da Educação e do Planejamento. Novas vagas do Pronatec caíram 57% entre 2015 e 2014. Tudo isto dentro de um plano de contingenciamento do ministro da economia, Joaquim Levy, onde a educação deveria representar 13% dos quase 70 bilhões do bloqueio do Orçamento da União. Quer dizer, é inegável que não podemos culpar apenas Bolsonaro pela redução de 56% dos investimentos em educação nos últimos 4 anos, embora este esteja apenas aprofundando o buraco. Para dar alguns números apresentados pelo Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal, entre 2014 e 2018, o orçamento da educação passou de 117,3 a 103,5 bilhões, mais especificamente, os orçamentos do ensino superior, básico e profissional, diminuíram respectivamente de 15, 19 e 27%. Enfim, faz-se importante ressaltar esse fato e talvez utilizar uma frase do jornalista Rafael Oliveira em um artigo de 2016 no Huffpost Brasil: “Onde o fascismo surge apontado, quem direciona o dedo parece vestir a mesma suástica que critica”. Como também ressalta em seu artigo, houve muita pouca mobilização acadêmica.

Enfim, voltando para o recente corte do ministro Abraham Weintraub, alguns especialistas já estão dizendo que a decisão unilateral viola o Artigo 207 da Constituição: “as universidades gozam de autonomia didático-científica, administrativa e de gestão financeira e patrimonial, e obedecerão ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”. Além de que, o Congresso tendo aprovado um certo orçamento no final do ano passado, uma decisão dessas não deveria ser decidida sem passar por essa instituição. Nina Ranieri, coordenadora da Cátedra da UNESCO de Direito à Educação da Faculdade de Direito da USP, ressalta que “se o governo entende que há dificuldades financeiras é necessário conversas com os reitores das universidades para analisar de quais maneiras se pode estabelecer outras metas. Não é permitido, no entanto, cortar linearmente o recurso e muito menos baseado em uma motivação vaga e inespecífica”. A motivação, a balbúrdia, que não passa de motivação ideológica, infringe a Lei do Procedimento Administrativo (Lei n9.784/99) que determina a obrigação de que todas as ações do Executivo sejam acompanhadas de justificativas técnicas, como um estado. Enfim, a decisão unilateral foi tomada diante de uma total falta de diálogo e de respeito a Lei.

A outra suposta justificativa do governo seria que, graças ao corte, poderiam direcionar mais recursos à educação básica. Nas palavras de Bolsonaro em uma entrevista para a SBT: “A gente não vai cortar recurso por cortar. A ideia é investir na educação básica”. Mais uma balbúrdia do governo. De fato, ele congelou mais recursos da educação básica do que das universidades federais. De acordo com a pesquisa da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições de Ensino Superior (Andifer), usando dados públicos do Sistema Integrado de Planejamento e Orçamento do MEC e a pedido da Folha de São Paulo, o ministério congelou ao menos 2,4 bilhões previstos em educação infantil, contra 2,2 bilhões das universidades. Também houve congelamento no orçamento para construções em unidades do ensino básico de cerca de 146 milhões de um total de 265. Até mesmo nas modalidades em teoria defendidas pelo atual MEC (ensino técnico e a distância), o Pronatec teve que congelar 100,45 milhões de seu orçamento (ou seja, sua totalidade) e a Mediotec (ensino médio simultaneamente com ensino técnico) 144 de seus 148 milhões. Na compra de mobiliário e equipamentos para escolas, capacitação de servidores, educação de jovens e adultos (EJA) e ensino em período integral também houve um pequeno congelamento. Finalmente, houve uma pequena, porém chocante, contenção em programas de permanência de crianças de baixa renda em escolas, como na merenda (corte de 150 mil) e transporte escolar (19,7 milhões). Por mais importante que seja, de fato, a educação básica, o governo não se sustenta nesse discurso, como mostrei acima. E mesmo que se sustentasse, não basta negligenciar totalmente a importância do ensino superior, pois, os dois são complementares. Como diz Mônica Gardelli, superintendente do CENPEC (Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária): “Nossa maior defesa é por mais recursos para a educação básica, mas não queremos que sejam retirados das universidades […] Para onde vai esse menino do ensino médio de hoje, se não houver universidades nos próximos anos?”.






Se a educação era a prioridade inicial do governo Bolsonaro, ele parece muito mais preocupado em perdoar as dívidas da área rural enquanto também corta o orçamento da proteção ambiental do que investir nela.

Ou seja, a decisão do MEC não parece se sustentar em nada, e se inscreve em um discurso hipócrita, violento e conspiratório (vale lembrar que segundo o ministro da educação, grande parte do “topo” do país é dirigido por comunistas), além de anti-constitucional. Nos resta então a única suposta justificação, que eles nem mesmo admitem, que é a ideológica. Quanto a essa, gostaria de dizer que a estratégia é péssima. De fato, mesmo que as universidades fossem de fato um antro para comunistas, cortar o orçamento dessa forma é uma péssima estratégia ideológica e apenas criará “novos comunistas” que se vem ameaçados por esse governo. Em outras palavras, até do ponto de vista ideológico, o corte arbitrário é um tiro pela culatra. Enquanto isso, o “ideólogo sem-ideologia” Olavo de Carvalho, já até se posicionou. Em um vídeo recente (de quando o corte ainda era reservado as áreas de filosofia e sociologia), Olavo ataca um dos manifestos que circularam na ocasião e conclui se dirigindo ao autor do manifesto que criticou, professor de filosofia, dessa maneira: “Vocês não apenas devem cortar a verba das suas faculdades, mas vocês deveriam ser obrigados a devolver o que já gastaram”, se referindo à produção intelectual do professor, principalmente destinada à “Teoria Crítica” que, para Olavo, é a “mesma merda” que marxismo cultural. (Link para o vídeo https://youtube.com/watch?v=RSdumubOlaU). Abraham e Olavo não parecem realmente se preocupar com a democratização da educação, mas apenas com uma limpeza ideológica, muitas vezes personificada na imagem de Paulo Freire. Para citar outro importante ator na educação, Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”.

Quais são os efeitos desses cortes?

Em uma universidade como a UFMG, por exemplo, que perderá 30% de seu orçamento, isso significa um corte nos serviços básicos como água e luz, não havendo dinheiro para compra de suprimentos usados em salas de aula e laboratórios. Segundo a reitora, Sandra Regina Goulart, 215 milhões são usados apenas na manutenção, investimentos com pesquisa e pagamento de terceirizados, ora o corte será de 65 milhões. Apenas de terceirizados, a UFMG possui 4 mil. Agora imaginem isso multiplicado pelas 12 instituições federais do Estado. E agora, imaginem isso multiplicado pelo país. Ou seja, o corte também pode aumentar a grave crise de desemprego também. Continuando na área da educação, a UFMG possui muitos laboratórios, 400 apenas no Instituto de Ciências Biológicas que depende completamente do fornecimento de luz para manter os insumos nos freezeres. O instituto, contradizendo o argumento do baixo desempenho do MEC, possui o maior número de patentes de medicamentos no país e se posiciona em 13a posição no ranking mundial. No departamento de zoologia, o corte pode representar a perda de espécies tão valiosas quanto as queimadas no Museu Nacional no Rio. Isto multiplicado a totalidade do país pode representar perdas astronômicas em termo de desempenho, pesquisa, investimentos, empregos, precariedade de infraestrutura, etc, um verdadeiro desastre.

No Rio, o colégio Pedro II - a mais antiga instituição federal de ensino básico no Brasil - e o Cefet sofrerão cortes de 30 a 40%. O colégio Pedro II registrou um bloqueio de 18.680 milhões (36,37%), o que poderá significar, para o reitor Oscar Halac, a interrupção prematura das atividades: “Se o corte orçamentário for sacramentado, a instituição não terá condições de funcionar”. A estimativa é de interrupção em agosto. Quanto ao Cefet, o corte chega a 39% do orçamento, ou seja, cerca de 17 milhões, conseguindo se manter até outubro. Nas palavras de Jeronimo Silva, representante dos institutos federais, o presidente do Conselho das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Cientifica e Tecnológica (Conif): “Com isso, o nosso orçamento volta a ser o que era em 2008 e 2009. Temos o dobro do número de campi pelo Brasil em comparação a 2008. O número de alunos atendidos é duas vezes maior […] estamos crescendo e o orçamento, caindo”. Quanto a UFRJ, maior universidade federal do país, o corte atingiu o patamar de 41%, quer dizer, 114 milhões. Segundo o reitor Roberto Leher, é como se “o fim do ano tivesse sido antecipado”.

Por um lado, o cenário parece catastrófico, porém, esse não é meu objetivo aqui. Com a ajuda do meu título, quero tentar expor uma opção, uma saída, uma estratégia.

Em primeiro lugar, a falta de uma verdadeira justificação fora da justificação ideológica, o MEC abriu uma brecha para ser atacado. De fato, pelo lado judicial e político, vários atores já estão agindo contra as medidas. Tabata Amaral, por exemplo, já protocolou um requerimento de informação solicitando ao ministro que esclareça o critério de “balbúrdia”. A OAB também já afirmou que acionaria o Supremo Tribunal Federal por temer a violação da autonomia universitária. O presidente do conselho da OAB, Felipe Santa Cruz, já se manifestou contra: “a gota d’água num cenário de perseguição ideológica que põe em risco a autonomia universitária prevista na Constituição”. O partido Rede e Sustentabilidade também já acionou o STF para que os cortes sejam suspensos.

Por outro lado, apesar dessa situação, o momento é oportuno. De fato, não podemos negar que dentro de uma crise mais generalizada, a crise na educação é particularmente grave, tanto no nível básico quanto superior. Se o governo pretende planejar um “tornar-se UERJ” do conjunto de instituições federais ao redor do país, temos que tirar dessa experiência uma séria e honesta reforma e renovação na educação. Faço aqui referência ao sucateamento da UERJ que se encontrou em total precariedade, sem poder nem mesmo pagar seus funcionários (professores, pessoal da limpeza...) por conta da crise econômica no Rio de Janeiro e presto minhas mais sinceras homenagens a todos os que conseguiram superar e ainda lutam contra essa fase de crise. Enfim, se a balbúrdia é um aumento da produção acadêmica, do desempenho, do diálogo e da renovação, devemos criar uma educação da balbúrdia. E, ao contrário dos catastrofistas, há sim vários exemplos a seguir. Tabata Amaral, por exemplo, fez parte do “Mapa do Buraco”, em que expõe as várias dificuldades do setor educacional, assim como exemplos positivos ao redor do país. O momento é oportuno para revisitar nossos princípios e reformar novamente a educação, por dentro, além de melhor valorizar as descobertas acadêmicas. Não temos mais grandes pedagogos como Darcy Ribeiro no poder, e nós devemos aprender a tirar proveito disso. Uma reforma interna e subjetiva da educação. Além disso, se realmente quisermos mobilizar contra essas medidas, temos que pensar a mobilização pela educação fora dos aparelhamentos partidários, pois, o direito a educação parte de um valor que é muito superior à polarização entre comunistas e bolsonaristas, coxinhas e petralhas, entre esquerda e direita: a justiça social.

Para concluir, devemos dividir a balbúrdia em dois, uma balbúrdia para o governo e outra para as universidades. Primeiramente, tomando a segunda definição do substantivo balbúrdia, é preciso constatar que a única situação confusa e trapalhada na educação neste momento é a ineficácia da atuação do ministério liderado por ministro que não passa de um economista financeiro que não entende absolutamente nada do assunto e que persiste na sua total imaturidade. Além de que, essa situação confusa, que já havia se iniciado quando Velez ainda era ministro, nos faz apenas perder tempo em que não podemos perder nem um segundo. 

Em segundo lugar, tomando a primeira definição, está na hora de uma mobilização barulhenta que fará jus ao critério da balbúrdia e criar uma verdadeira educação da balbúrdia, ou seja, uma educação do diálogo, da mobilização, da apropriação de espaços, etc. Para além das trincheiras da resistência, a educação precisa ser espaço de criação e ação, da balbúrdia.


Se eles querem balbúrdia, eles a terão.


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