quarta-feira, 29 de maio de 2019

Deus e o Diabo na Terra do Improviso


Deus e o Diabo na Terra do Improviso
Por Luca Szaniecki Cocco1


RESUMO: Esse texto propõe uma reflexão sobre o ato de improvisar. Primeiro, a partir da análise do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964), pensado junto com uma leitura do livro O Homem Revoltado (1951) de Albert Camus, focando nas questões da revolta e do improviso de vida do personagem principal do filme. No segundo momento, é desenvolvida a questão do improviso na cena musical desde os tempos da escravidão até os movimentos socioculturais mais recentes que levam a defini-lo como resistência aos processos de dominação.
Palavras chaves: Revolta; Resistência; Improviso; Cinema novo.

Texto também publicano na Revista Lugar Comum #52: http://uninomade.net/lugarcomum/52/



Introdução


Deus e o Diabo na Terra do Sol foi dirigido em 1964 por Glauber Rocha, um dos fundadores do Cinema Novo, um grande pensador da questão da potência dos pobres, defensor da Estética da Fome e também de outra, uma estética anti-dialética e do improviso, como tentarei demonstrar aqui. Este filme possui uma mensagem extremamente pertinente, não apenas para sua época (precursora dos movimentos de 1968) mas também para hoje, em tempos de extremismos e divisões (materiais e intelectuais). Tempos supostamente dialéticos de antagonismos, para ser mais preciso.
Com efeito, o filme apresenta uma estética de dualidades e lido à luz d’O Homem Revoltado, de Albert Camus, o homem faminto de Glauber Rocha é um homem complexo e que depende dos improvisos que cria para escapar aos poderes contra os quais se confronta. Esses improvisos estão presentes nas cenas e na música desse filme realizado por um cineasta que definia sua prática como “uma câmera na mão e uma ideia na cabeça”.


Sobre as dualidades e complexidades da Estética da Fome


Em uma primeira análise do filme, mais ampla, percebemos que ele é inteiramente baseado e trabalhado ao redor de dualidades e oposições, tal como a sociedade brasileira. Primeiramente, o título faz diretamente referência à certa dualidade religiosa: Deus e o Diabo se encontram no sertão. O segundo fator mais explicito é o próprio fato do filme ser realizado em preto e branco (por razões econômicas também, imagino). Além desses dois fatores mais explícitos e fáceis de captar, há uma longa série de imagens que jogam com essa ideia: Manoel segura a faca com uma mão e o Cristo com outra em uma determinada cena, Corisco divide sua face em duas com seu punhal (conferir a icônica imagem do cartaz), Antônio das Mortes e João, o cego, são separados por uma viga de madeira, entre muitas outras imagens.
Analisando mais profundamente, podemos ver que os personagens também são claramente divididos em suas personalidades e no que eles representam e acreditam. Agora veremos alguns exemplos.
Manoel, o protagonista, evolui de trabalhador para assassino, depois de beato fanático para cangaceiro e no final ele é um homem que busca um recomeço e que foge dos tiros de Antônio das Mortes, a ponto de largar sua esposa caída pelo caminho. É importante marcar que Manoel e Rosa são típicos personagens da Estética da Fome que Glauber defende no Cinema Novo. Manoel e Rosa, como outros personagens do Cinema Novo, sentem a fome, matam para comer, fogem para comer. Assim como Glauber explica em seu manifesto: “a originalidade (do Cinema Novo) é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome, sendo sentida, não é compreendida” (ROCHA, 1965). Não é à toa que a primeira imagem do filme é a carcaça de uma vaca pois esta carcaça representa a fome e a seca do Nordeste. Poucos minutos depois, Glauber filma uma cena relativamente longa onde Manoel e Rosa estão moendo mandioca para comer. Nesta cena, o som, como elemento cinematográfico, se torna importante pois, como Glauber não pode fazer o espectador sentir a fome que as personagens sentem, o som da máquina que mói a mandioca é utilizado para deixá-lo um pouco desconfortável e assim fazer com que a fome seja, de alguma maneira, “sentida”.
Passemos agora para São Sebastião. Trata-se de um fanático religioso, à imagem de Antônio Conselheiro, que busca os céus (ou a Ilha) realizando milagres e redimindo pecadores com o “sangue dos inocentes” (literalmente). Ele representa as pessoas geradas pela miséria e religiosidade do Nordeste, que se criam a partir de uma oposição à Igreja oficial (representada pelo padre do filme) e que acabam virando sua própria encarnação. Assim como Antônio das Mortes explica: “Padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu acho que ele tem parte com Deus também”. Sebastião, quando mata o bebê, segue a mesma lógica do Padre que lê a sentença deste primeiro: “Somente depois que você cometer um crime maior poderá ser perdoado pelos crimes que cometeu”. Embora Sebastião seja parecido e às vezes comparado com Antônio Conselheiro, estes dois homens são bastante diferentes. Conselheiro era o verdadeiro líder de Canudos e o reconhecimento da comunidade era tal que foram necessárias quatro expedições republicanas para destruí-la. É interessante notar, por exemplo, a evolução da percepção de Euclydes da Cunha em seu livro Os Sertões. De fato, mesmo permanecendo com uma visão bastante preconceituosa do nordestino, ele desenvolve um tipo de admiração pelos guerreiros de Canudos, deixando de considerá-los apenas como bárbaros e ladrões. O assassinato de Sebastião por Rosa mostra que ele não era um líder tão aceito e amado quanto Conselheiro.



Antônio das Mortes, o “matador de cangaceiro”, é um mercenário, um homem da “lei da selva” que mata cangaceiros em nome de sua justiça. Embora aja por conta própria, ele é muitas vezes mero instrumento do governo ou de alguma outra autoridade local. Neste caso, ele aceita a tarefa de matar Sebastião e seus seguidores pelo dinheiro oferecido pelo Coronel e pelo Padre e pelo medo de que ele se torne um novo Conselheiro. Seus assassinatos são cometidos sem remorso, o que não o distancia tanto dos cangaceiros que ele mesmo mata.
Enfim, Corisco é um personagem extremamente importante e também é dividido por várias forças. Este é um dos poucos homens que sobraram da turma de Lampião e Maria Bonita, e tanto ele como Dadá (sua companheira) são inspirados em pessoas reais. Corisco, era conhecido como Diabo Louro e sequestrou Dadá quando tinha apenas treze anos de idade. O Diabo Louro e seus cangaceiros representam o outro lado da miséria, que não é o religioso, e sim o da luta, da resistência e da violência. Sua missão é defender o povo de onde eles vieram, mas, muitas vezes, acabam movidos por vinganças pessoais e não têm medo de matar, estuprar e torturar seus supostos inimigos. Eles acreditam que encarnam São Jorge, o santo do povo, lutando contra o Dragão da Miséria.
No manifesto Eztétyka da Fome, no ano seguinte ao filme, Glauber procurou explicar algumas das suas opções estéticas. Nele, ele explica, por exemplo, que a “mais nobre manifestação cultural da fome é a violência” (ROCHA, 1965). O que se expressa por Corisco, mas também por Antônio das Mortes, Sebastião, e até mesmo Manoel. Porém, ele ressalta que essa violência não é primitivista e questiona: “Fabiano é primitivo? Corisco é primitivo?” (ROCHA, 1965). Ele responde então que a violência da fome não é primitiva, mas, sim, “revolucionária”, pois é como o colonizador compreende a existência do colonizado: “foi preciso um primeiro policial morto para que o francês percebesse um argelino” (ROCHA, 1965). Essa citação foi escrita no contexto da Guerra de Independência da Argélia, mas pode muito bem se aplicar ao Brasil de hoje. Coincidentemente, Argélia é o pais onde Camus nasceu, autor de quem falaremos mais tarde.
O filme de Glauber é, portanto, uma longa sequência dessas imagens cheias de contrastes e complexidades, sendo assim muito mais do que um simples filme de dualidades. Essa dualidade gera uma ambiguidade. Todavia, ambiguidade não é algo raro no cinema se considerarmos a obra de outros cineastas. Podemos usar como exemplo a ambiguidade ácida (e temperada de humor negro) de Kubrick (Full Metal Jacket, Lolita, Dr. Strangelove, etc.) ou até a estranha familiaridade de David Lynch (Twin Peaks, Mulholand Drive, Rabbits, entre outros) embora seja possível ver algumas semelhanças entre o humor ácido de Kubrick e de Glauber. Isto pode ser visto, por exemplo, tanto nas cenas finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol quanto nas de Full Metal Jacket.

Uma teoria-prática anti-diáletica: o homem faminto de Glauber Rocha, o homem revoltado de Albert Camus

A complexa dualidade de Deus e o Diabo na Terra do Sol também é interessante pelo fato de supor um terceiro aspecto que é explicitamente anti-dialético. Antes de mais nada, é preciso entender que esse “terceiro aspecto” não é nada parecido com uma “terceira via”, nada disso. Com efeito, esse terceiro aspecto, sem nome, é o simples fato que essa dualidade, na verdade, pressupõe uma multiplicidade dentro do próprio indivíduo. Se tomarmos por exemplo todas essas imagens ambíguas e divididas citadas anteriormente, o que há em comum em todas elas? O que existe entre o Bem e o Mal, entre Deus e o Diabo? Há o Homem. O homem é o encontro desses lados. Mas não se trata de um ser dividido em dois, mas sim do encontro de uma multidão de faces. Alguns podem argumentar que no filme não há o coletivo, como ele ocorre em Pasolini, por exemplo. Sim, de fato não há, mas não porque Glauber ache o coletivo desinteressante e sim porque, no filme, ele não precisa dele. Ele não precisa de uma representação clássica de um coletivo de homens porque cada indivíduo apresentado, protagonista ou figurante, é um coletivo. Um coletivo de experiências, experiências de violência, de miséria, mas também de felicidade e amor.
Por essa razão, vários rostos são mostrados em uma das primeiras cenas com Sebastião. Os rostos parecem-se muito com uma descrição de uma mulher por Euclides da Cunha, quando os primeiros vencidos evacuavam Canudos: “A miséria escavara-lhe a face [...] Uma beleza olímpica ressurgia na moldura firme [...] perturbados embora os traços impecáveis pela angulosidade dos ossos apontando duramente no rosto emagrecido e pálido, aclarado de olhos grandes e negros, cheios de tristeza soberana e profunda” (DA CUNHA,1997).














                                  Fotografia dos sobreviventes de Canudos

E assim chegamos ao segundo ponto interessante dessa dualidade “glauberiana” que é uma teoria-prática anti-diáletica. Pois, o filme mostra que tese, antítese e síntese não são entidades separadas na história, e sim que as três se encontram, ao mesmo tempo, no homem. Nesse sentido preciso, o homem não é um ser histórico como afirmou Hegel e depois Marx e Nietzsche. E é esse ponto, anti-dialético e anti-histórico, que nos permite aproximar a revolta presente no filme Deus e o Diabo na Terra do Sol de Glauber Rocha de 1964 da concepção de revolta de Albert Camus em O Homem Revoltado, livro publicado em 1951 e, infelizmente, muitas vezes esquecido e até criticado pelos extremistas do espectro político.
Essa concepção de revolta é explicitamente anti-dialética e uma das maiores críticas do hegelianismo e seus afluentes (Marx, principalmente), assim como do niilismo. Colocando em poucas palavras, o livro explica como a dialética de Hegel, na verdade, cria uma utopia que substitui Deus pelo futuro (CAMUS, 2013). De fato, a lógica dialética da tese e da antítese cria uma narrativa profética à espera de um futuro. Desse modo, a dialética impede a ação e cria um fatalismo perigoso. Como Camus explica, o futuro é a única coisa que o mestre está disposto a dar para seu escravo pois a promessa, a profecia de um futuro melhor é o próprio fatalismo da condição do escravo que deve esperar para que a história se realize. Além disso, ao longo dos anos, a profecia pode abrir caminho para que autoritarismos (que sequer deveriam existir como hipóteses) se tornem concretos e efetivos.
Essa analise não é, portanto, pura teoria. Quando Camus ataca Marx e Nietzsche, é preciso ter bastante cuidado. Tanto Marx quanto Nietzsche criticaram Hegel de certa maneira: Marx quanto ao problema do idealismo e Nietzsche na questão moral. Porém, como Camus explica, seus pensamentos, infelizmente, prosseguiram com uma lógica similar à de Hegel e acabaram por inspirar autoritarismos no século XX. Marx inspirou Lênin e a Revolução Russa que, por sua vez, se exauriu no stalinismo. Nietzsche inspirou o niilismo anarquista e um conceito racial que, de certa forma, inspirou o nazismo. O caso de Nietzsche é um pouco mais complicado pois seu conceito de “super-homem” se referia a uma capacidade filosófica que acabou sendo interpretada por Hitler como um conceito racial. Ao final do Homem Revoltado, quando Camus expõe o que ele define como “Pensamento do Meio-Dia” (Pensée du Midi), ele deixa claro que é um pensamento além do “fantasma [...], do profeta [...], da múmia deificada em seu caixão de vidro” (CAMUS, 1951), isto é, além de Nietzsche, Marx e Lênin respectivamente.


                                                        Fotografia de Albert Camus
Também é preciso marcar a importância dessa mensagem de Camus no mundo do pós-segunda Guerra Mundial que procurou expressar em todas as formas das artes o auge do horror e do absurdo (outro elemento chave para entender a filosofia de Camus) do mundo ocidental (e oriental, como nas animações japonesas) e do começo da Guerra Fria. Camus desenvolve sua própria definição de revolta que é contrária ao infinito “devir histórico” da revolução marxista e do anarquismo russo. Sua ideia de revolta se define pela “rejeição de ser tratado como coisa e ser reduzido à simples história” (CAMUS, 1951). A revolta, ao contrário da revolução que demanda uma “redução ao estado de força histórica”, é uma verdadeira afirmação do “ser dividido que nós somos” (CAMUS, 1951). A História e o Homem não são simples nem dialéticos. Deus e o Diabo na Terra do Sol é a pura encarnação desse conceito pelo fato que, ao afirmar as várias facetas do Homem e dos seus rostos, ele nega o simplismo dialético e seus antagonismos pois a realidade brasileira não pode ser dividida entre o Bem e o Mal.
O Homem Revoltado é um homem que diz não (CAMUS, 1951). Mas essa negação não é completa pois o homem revoltado de Camus não é desmedido, não é o homem niilista da revolução, onde tudo é permitido2. De fato, o homem revoltado afirma e nega ao mesmo tempo. Na relação dialética entre Mestre e Escravo, o Escravo deve se revoltar como antítese para ocupar e conquistar o lugar do Mestre. Para Camus, a dialética demanda totalidade e não unidade, como a revolta, o que a leva à conquista “planetária” e surgimento de impérios3. A crítica à dialética por parte de Camus lembra quando Deleuze diz que não existe governo de esquerda, pois, quando a esquerda toma o poder, ela cessa de ser esquerda. Na relação Mestre e Escravo de Camus, o escravo diz “não” para seu Mestre quando ele percebe que algo foi ultrapassado. Porém, nessa negação surge uma afirmação, a afirmação de um valor, comum a ambos, que o escravo considera “valer a pena”. E é a partir desse valor, comum, que se cria um “limite” no qual os homens são unidos por esse valor. E é nesse limite, e não na conquista, nessa nova tensão contínua que surgem novas ideias e horizontes. Camus ataca diretamente os movimentos de revolta onde tudo é permitido que são encarnações do que ele chama de Desmedida. Como ele explica: “Em 1950, a desmedida é um conforto, sempre, e uma careira, às vezes. A mesura, ao contrário, é pura tensão” (CAMUS, 1951). Pois, como explicado anteriormente, a dialética serve de conforto e dispositivo para a manutenção do escravo, mas a tensão é uma verdadeira luta. O valor pelo qual o escravo se revolta não diz respeito apenas a ele, mas a todos, inclusive ao Mestre. Mais uma vez a lógica revoltada de Camus é contrária à criação de antagonismos: “Eu me revolto então nós somos” (CAMUS, 1951).
A revolução de Hegel e de Marx é onde tudo é permitido e onde tudo é necessário (CAMUS, 1951). A revolta de Camus é onde “tudo é possível”, mas com a existência de um limite, de uma fronteira, onde se encontra a tensão criadora. “A revolta toma partido de um limite onde se estabelece a comunidade dos homens” (CAMUS, 1951), talvez essa comunidade seja a mesma que a de Glauber: “negar a violência em nome de uma comunidade fundada pelo sentido do amor ilimitado entre os homens” (ROCHA, 1971).
Voltando ao filme, Manoel, quando mata seu patrão, é um Homem Revoltado. Ele se revolta quando percebe a injustiça com a qual está sendo tratado. Manoel considera que seu patrão fora longe demais. Ao matá-lo, Manoel não quer se tornar ele mesmo um Mestre, e então foge para obter perdão. Pois a lógica da revolta camusiana sempre segue a preservação da vida. A revolta metafísica, segundo Camus, é a revolta do Homem contra sua condição de mortal: a revolta é, por princípio, contra a morte. Ao contrário dela, a lógica dialética é suicída4. E agora vemos então como a história de Manoel oferece uma alternativa interessante e parecida com a lógica revoltada de Camus. Pois, Sebastião e Corisco representam duas alternativas para a miséria: uma pelo fanatismo religioso e a outra pela luta armada desmesurada. Manoel representa uma alternativa que se aproxima do improviso, em oposição à lógica dialética e do materialismo histórico de Marx (que Camus chama de “determinismo histórico”).


Os improvisos dos homens revoltados: de Manoel e muitos outros


É fato que o improviso parece seguir Manoel ao longo do filme: ele mata seu patrão, procura Sebastião para buscar perdão, se torna um cangaceiro com Corisco, e foge mais outra vez, pronto para recomeçar. Agora veremos como a questão do improviso é importante para o oprimido, principalmente nos antigos territórios colonizados, mas também hoje em dia, pois como Glauber explica: “A América Latina, inegavelmente, permanece colônia, e o que diferencia o colonialismo de ontem do atual é apenas a forma aprimorada do colonizador” (ROCHA, 1965).
Para melhor explicar o conceito de improviso farei um parêntese sobre música, pois, é no improviso musical que conseguimos apreender a importância do improviso na História.
Tanto nas tribos indígenas originárias das Américas quanto nas populações que vieram da África em tempos de escravidão, o som, a música tinha enorme importância pois era sinal de vitalidade. Como David Hendy explica em seu livro Noise: A Human History of Sound & Listening, para muitos nativos americanos o som, em si, era vivo (HENDY, 2014). Por essa razão, para algumas tribos como os Iroquois, quando sob tortura, era importante cantar sua própria “canção da morte” (death song) enquanto pudesse resistir. Junto com os africanos aqui escravizados, criaram uma verdadeira resistência à colonização a partir da música e do improviso.








Com efeito, o improviso em si foi e ainda é algo extremamente importante para todo tipo de cultura afro-americana, seja na música (jazz, blues e samba entre outros ritmos) seja em comemorações tais como o Carnaval (a festa da carne). Para David Toop, músico experimental, “humanos precisam aprender a improvisar para lidar com eventos aleatórios, fracasso, caos” (TOOP, 2016). Em oposição a essa ideia de improviso existe a dialética, a profecia, a burocracia, o colonialismo, ou como explica Toop: “como uma antítese a essa necessidade de improvisação, encontramos uma traiçoeira cultura da gestão estratégica, pensamento, planejamento e objetivos estruturados militaristas expandindo em todas instituições sociais” (TOOP, 2016).
Quando Pasolini escreve em uma de suas visitas aos Estados-Unidos que “temos de jogar nosso corpo na luta” (PASOLINI, 2012), ele não se referia apenas ao movimento negro crescente dos anos 60, as vésperas do “Black Civil Rights”, mas também à resistência cultural afro-americana. Mesmo nos tempos da escravidão, sempre houve resistência. O que começou com “gritos do campo” (field hollers), canções do trabalho (work songs) e reuniões ocasionais, se tornou uma verdadeira cultura poderosa e de revolta por princípio. Pois a própria existência de algum tipo de resistência era um ato de revolta, a vida, pelo som, que não é mais do que o exercício da alma pelo corpo, se tornou um ato criador.
O improviso sempre ocupou uma parte importante nessa cultura pois ele era o maior nível de expressão que alguém poderia chegar. Quando Pasolini escreve que o corpo é jogado na luta, ele esquece o papel da espiritualidade do povo negro na sua luta (parafraseando W.E.B Dubois). No improviso, no jazz, no blues, no soul, na dança, no ritual gospel, sempre foi a alma passando pelo corpo, pelo instrumento e pela voz. Uma alma azul, triste, “blue”, mas também repleta de potência criadora. É então que podemos entender a outra citação de Pasolini: “Uma vida como protesto vivido, como luto, suicídio, greve ou martírio”. A canção de Nina Simone “Ain’t got No/I Got Life” ilustra totalmente a condição do negro americano: ele não possui bens nem família (“Ain’t got no home[...] Ain’t got no mother”), mas ele possui seu corpo e sua vida: “I got my arms, got my hands, got my fingers, got my legs [...] I’ve got life”. Além disso, ele não possui apenas uma vida, mas várias (“I’ve got lives”), assim como os rostos coletivos de Deus e o Diabo na Terra do Sol.



O melhor exemplo dessa noção de improviso como resistência é talvez o próprio John Coltrane. A musica “Alabama”, escrita logo após o assassinato de jovens negros naquele estado americano, é música de resistência, improviso e espiritualidade. Aliás, foi justamente quando Coltrane começou a improvisar, com seu distinto estilo “spiritual” (ele começou a tocar o saxofone na igreja) e o nascente “free jazz” (com artistas como Ornette Coleman e Pharoah Sanders), que sua popularidade começou a cair. Seu improviso, sua alma tocada com a ajuda de seu corpo e instrumento, provocava e assustava, assim como o final de Deus e o Diabo na Terra do Sol também pode perturbar certos espectadores. Essa cena final é justamente a encarnação do conceito de improviso aplicado a outros setores além da música e da cultura. Não é um final típico, pois não explora soluções diretas, mas sim alternativas que possam parecer estranhas já que não estamos acostumados a elas. E é por isso o melhor final que uma obra como Deus e o Diabo na Terra do Sol pode ter. Já que não sabemos direito onde estão nossos amigos ou inimigos, já que não há verdadeiros antagonismos dialéticos dentro do homem, que tipo de final há de ter? Um improviso na vida.
Arte e Revolta, segundo Camus, não são separados como Arte e Revolução. A Arte, assim como a revolta, é um movimento que exalta e nega ao mesmo tempo (CAMUS, 1951). Ainda mais, a arte também é criadora e possui características próprias que realizam a reconciliação do singular e do universal que Hegel sonhava (CAMUS, 1951). A arte então, por principio é anti-dialética. Ela é pura tensão entre negação e consentimento, singularidade e universal, indivíduo e história (CAMUS, 1951). Embora Camus se concentre principalmente no romance, ele poderia muito bem ter escolhido como exemplo a música afro-americana e seus improvisos. De fato, o improviso também é a obra de uma pura tensão pois o bom solista toca em sua individualidade, com sua alma e corpo, mas também precisa escutar o que os outros estão tocando. No contexto da escravidão, da segregação ou do racismo disfarçado, essa forma de arte é criadora e potente. E como diria Camus: “Toda criação nega o mundo do mestre e do escravo” (CAMUS, 1951). A resistência cultural do escravo era a revolta em si, pois era a negação de sua condição e a afirmação de algo em comum, não apenas com seus companheiros, mas também com o homem branco. A exigência da revolta implica também uma “exigência estética”. Ou seja, o improviso é uma política de corpos sociais e individuais – corpos de homens e mulheres escravizados outrora ou postos a trabalhar em condições de subordinação mais recentemente – que tenciona formas de controle.
Esse improviso não é, porém, apenas simbólico. Ele teve um papel fundamental na luta e na resistência dos povos colonizados em geral, inclusive nas relações neocoloniais que persistem até hoje em dia. O improviso em si, já é uma manifestação de vida que nega o determinismo histórico ou material. O improviso, para o oprimido, é uma saída para sua própria condição, pois ele é a afirmação de outra forma de existência que não é pré-determinada. No capítulo “Escravidão e Rebelião”, por exemplo, Hendy explica a importância do som, do improviso musical na época colonial: “Os escravos africanos que trabalhavam nas terras de arroz do rio Stono em 1730 tinham poucas liberdades. Mas uma que eles tinham era a liberdade de adaptar os sons que seus donos oprimiam em novas formas que tinham vida por elas mesmas” (HENDY,2014). Foi dessa liberdade que surgiu o improviso, o jazz, o blues, o gospel, entre outros. Pois, “entre os escravos afro-americanos [...], a luta para fazer barulho e para serem ouvidos era crucial para seu próprio sentido de ser” (HENDY, 2014).


Improviso na música, improviso no cinema: a trilha sonora do filme solar.

Falaremos agora um pouco sobre a música no filme de Glauber Rocha. Grande parte da trilha sonora de Deus e o Diabo na Terra do Sol foi escrita pelo próprio Glauber e tocada por Sergio Ricardo, com algumas exceções como algumas composições de Villa-Lobos. A música é um elemento chave para o desenrolar da história pois ela segue o espectador como um narrador. Ela também possui letras muito importantes para entender a obra, como nas cenas finais quando Sérgio Ricardo canta “que a terra é do Homem, não é de Deus nem do Diabo”. Além da letra em si, a música é essencial para a imersão do espectador no ambiente: a linda melodia da música reflete muito bem o Nordeste, mas também um pouco o blues norte-americano. Ao trabalhar na música, Glauber diz que se inspirou de um cantor nordestino chamado Zé o Cego e seu primo Pedro das Ovelhas, além de outras cantigas que ele havia escutado no Nordeste. No mesmo texto onde explica o processo de criação da música, Glauber também fala da relação entre cinema e música brasileiros: “Acho que o cinema brasileiro tem, nas origens de sua linguagem, um grande compromisso com a música –o nosso triste povo canta alegre, uma terrível alegria de tristeza” (ROCHA, 1964). E continua: “o samba de morro e a bossa-nova, o romanceiro do Nordeste e o samba de roda da Bahia, cantiga de pescador e Villa-Lobos– tudo vive desta tristeza larga, deste balanço e avanço que vem do coração antes da razão” (ROCHA, 1964). Tudo vem dessa tristeza, dessa alma “blue”, que surge como uma forma de “tensão” camusiana, o balanço e o avanço. A voz do cantor é de suma importância para Glauber que a define assim como Camus define sua revolta: “Na voz do cantador está o “não” e o “sim” (ROCHA, 1964).
Podemos muito bem falar do improviso no cinema igualmente. Assim como na música, na dança, e outras formas de arte, o cinema possui uma vasta gama de movimentos e diretores que podem mais ou menos se conformar com a ideia do improviso. Hitchcock, por exemplo, era conhecido como um “roteirista de ferro” que repetia: “o filme já está pronto, só falta rodar. Outros abraçam totalmente o improviso para criar um cinema mais experimental, como Rosselini, pioneiro do Neorrealismo italiano, que chegava ao set sem o roteiro completo. Há também os intermediários como Tarantino, Scorsese ou Kubrick, que possuem roteiros fortes e importantes, mas que veem o potencial do improviso em seus filmes. Aliás, algumas das cenas mais icônicas desses diretores foram criadas a partir de improvisos. Leonardo DiCaprio quebrou um copo e cortou sua mão enquanto mostrava um crânio de um antigo escravo em sua incrível atuação como Calvin Candie em Django Livre de Tarantino. A cena onde Travis se olha no espelho e ostenta sua pistola em Taxi Driver deveria ser muda, porém Robert De Niro incluiu algumas falas que tornaram a cena antológica: “Are you talkin’ to me?” Outro grande exemplo é a frase dita por Jack Nicholson, tirada de um programa de TV, ao quebrar a porta do banheiro do Iluminado: “Here’s Johnny!”



Enfim, o Cinema Novo também possui uma estética cinematográfica bastante interessante e experimental. O movimento reunia cineastas que ao sair dos estúdios para ir à ruas, procuraram ir ao encontro do povo brasileiro, seja ele pescador ou operário, camponês ou morador de favela. A ideia de sair do estúdio para ir filmar com sua própria câmera é que é interessante. Aliás, é uma prática que hoje já se popularizou bastante, por exemplo com o recente filme de Agnès Varda e JR, Visages, Villages. Ainda mais, o maior exemplo de improviso no Cinema Novo é a própria cena final de Deus e o Diabo na Terra do Sol que estamos usando para explicar esse conceito. Ao correr com Manuel, Rosa (interpretada pela atriz Yoná Magalhães) tropeça e cai. Tropeço e queda não estavam previstos, porém, Glauber mandou a ação ir adiante e deixou a cena no corte final do filme.
Gustavo Souza em seu artigo Estética do improviso no cinema de periferia para a revista Famecos define sua estética do improviso como o “encontro horizontal entre (1) contexto, (2) as condições materiais e metodológicas de cada núcleo de realização e a (3) temática escolhida” (SOUZA, 2012). Embora tenha usado o cinema nascente das periferias e tomado como exemplo o documentário Super gato contra o apagão que trata da crise energética durante o governo de FHC, essa mesma definição de estética do improviso pode muito bem se aplicar ao Cinema Novo. Além de que, tanto o Cinema Novo com sua estética da fome e da violência, quanto o cinema de periferia, tem um claro projeto social. Nas palavras de Mikhail Bakhtin: “o estético [...] é apenas uma variedade do social” (Bakhtin apud Souza, 2012).
Para resumir, o conceito de improviso, ao longo da história colonial (e neocolonial) se tornou algo de suma importância para o oprimido. Pois o improviso, que seja na música, na dança, ou na vida em geral, é a afirmação da vida, da liberdade e da resistência. Ele se tornou uma peça chave para o corpo e para a alma do escravo, do indígena e do trabalhador pois o improviso, por principio, não é dialético nem determinista. Corisco e Sebastião representam dois tipos de escapatórias do poder (do Estado ou da Igreja). Manoel encarna uma terceira opção que seria a do improviso. Assim como as performances mais extremas de improviso, o final de Deus e o Diabo na Terra do Sol pode ser desconfortável para alguns tipos de espectadores que esperam que lhes sejam ditos quem são os inimigos e quem são os amigos. Infelizmente (ou felizmente), na nossa sociedade brasileira, tanto nos anos 60 quanto hoje em dia, a situação é mais complicada. Porém, é preciso entender que a afirmação dessa complexidade, dessa diversidade, não é conformismo nem prejudica a própria ideia de resistência. Pelo contrário, é a forma menos autoritária de lutar pois ela se baseia na realidade e não em uma utopia distante e dialética. O improviso encarna da forma mais pura essa realidade diversa, assim como o solista precisa entender e se comunicar com os outros instrumentalistas para criar algo novo e incrível. Do mesmo modo que a revolta de Camus nasce de uma tensão constante: “o homem revoltado não tem repouso” (CAMUS, 1951). A lógica dialética, materialista, é que corresponde a um conformismo: o conformismo do opressor.
Assim, a lógica revoltada de Camus, que se encontra no filme de Glauber, é o que necessitamos hoje em dia, em um mundo de antagonismos. Pois, como o filme demonstra, o ser humano é um ser composto por várias facetas (assim como explica Camus, a polícia política do século XX demonstrou a “física da alma”) que não podem ser resumidas nem a seres históricos dialéticos nem a nenhum espectro político ou moral. Em oposição, o “devir histórico” de Hegel e dos totalitarismos do século XX faz com que o Homem precise se resumir ao eu social e racional, objeto de cálculo (CAMUS, 1951). Como o próprio Furio Jesi uma vez disse: “A palavra revolução designa corretamente todo o complexo de ações [...] considerando constantemente no tempo histórico as relações de causa e efeito[...]. Toda revolta pode, ao contrário, ser descrita como uma suspensão do tempo histórico” (JESI, 1996).
Além disso, o filme possui uma estética do improviso bastante particular que pode causar desconforto a alguns tipos de espectadores. O improviso, como encarnação da pura espontaneidade e diversidade, muitas vezes soa estranho. Porém, como o filme e a história colonial mostraram, o improviso é uma via certa contra o poder, seja ele o Governo, a Igreja, ou até mesmo Sebastião, Corisco e Antônio das Mortes. O improviso se encaixa perfeitamente na última frase do Homem Revoltado de Camus onde “no cume da mais alta tensão irá sair o impulso de uma flecha reta do traço mais duro e o mais livre” (CAMUS, 1951). O improviso, assim como a Revolta e a Arte, cria da tensão uma reconciliação entre o indivíduo e o universal. É dessa tensão, por exemplo, que surgem os rostos coletivos de Deus e o Diabo na Terra do Sol.
Com a guerra e violência generalizada no Brasil (a ponto de intervenção militar no Rio de Janeiro), devemos nos perguntar se antagonismos tão propícios a nos dividir não se tornam perigosos, pois o momento demanda ousadia para a criação de alternativas melhores e não “menos piores”. O ser humano é um ser complexo e não simplista, sendo o simplismo a mais perfeita base para o autoritarismo. Para Camus é necessária a afirmação do ser dividido que nós somos (CAMUS, 1951). Não um ser dividido apenas em dois (Deus e o Diabo) ou três (tese, antítese e síntese), mas sim em um coletivo de faces. Se me permitem usar um pouco de profecia, se continuarmos em caminhos dialéticos, antagonistas, proféticos, as probabilidades (já altas) de nossas supostas democracias se tornarem totalitarismos aumentarão à medida da nossa divisão. Deus e o Diabo na Terra do Sol, afirmando a complexidade junto com a capacidade do ser humano de fazer tanto o bem quanto o mal, e improvisar, representa visualmente uma alternativa possível.

Referências bibliográficas

CAMUS, Albert. L’homme revolté. Paris: Gallimard, 1951.
DA CUNHA, Euclides. Os Sertões. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997.
HENDY, David. Noise: A Human History of sound & listening. London: Profile Books, 2014.
JESI, Furio. Lettura del «Bateau ivre» di Rimbaud. Macerata: Quodlibet, 1996.
PASOLINI, Píer Paolo. Empirismo Eretico. Milão: Garzanti, 2012.

ROCHA, Glauber. Uma Estética da Fome. In: Revista Civilização Brasileira, n.3, julho, 1965.

ROCHA, Glauber. Deus e o Diabo na Terra do Sol - Texto de Glauber Rocha, publicado no encarte do disco da trilha sonora do filme, 1964.
SOUZA, Gustavo. “Estética do improviso no cinema de periferia” in Revista Famecos, v.19, n.2, 2012.
TOOP, David. Into the Maelstrom: Music, Improvisation and the dream of freedom before 1970. New York: Bloomsburry, 2016.

1 Luca Szaniecki Cocco é autor independente.
2 2 Para Camus, o niilismo histórico da dialética é uma justificativa de um tipo de violência sem limites: é a negação suprema. Para cumprir o seu dever histórico, universal, autoritário, tudo deve ser permitido, inclusive o assassinato e terrorismo. A revolta de Camus, ao contrário desse niilismo violento, é a luta pela vida. A revolução niilista necessita o sacrifício para ser cumprida. Mas “o revoltado demonstra no sacrifício que sua verdadeira liberdade não diz respeito ao assassinato, e sim quanto à sua própria morte” (CAMUS, 1951). Ou seja, o sacrifico não é algo determinado pelo dever histórico, e sim pelo próprio individuo.
3 3 Assim como na relação dialética, o escravo precisa tomar posse, a antítese precisa conquistar a tese. A logica dialética é então colonizadora, porque demanda uma totalidade que, segundo Camus, precisa ser planetária para sobreviver. Ao escrever em 1951, Camus já prevê o que se tornaria a Guerra Fria e o Imperialismo soviético. Camus define essa busca como Potência, que deve se acumular até a criação do “Império Ideológico”: “a vontade de potência, a luta niilista pela dominação e pelo poder, fizeram mais do que se livrar da utopia marxista” (CAMUS, 1951).
4 4 Se o processo não conduzir à conquista e à negação total, ele esta destinado à morte por si mesma. E junto com o desmoronamento do Império, muitos morrerão, assim como Stalin levou grande parte de sua população ao tumulo “essa simplificação deve ter costado caro aos koulaks que continuavam mais de cinco milhões de exceções históricas”. 

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