terça-feira, 30 de julho de 2019

Kinogate Capítulo 2: O Jogo

Capítulo 2: O jogo
por Tomaz Lamego e Luca Szaniecki Cocco








O grande temporal de Kinogate ameaçava trégua por um breve momento, naquela eterna noite chuvosa que assolava a cidade à séculos. As finas gotas de chuva estalavam no chão frio e rochoso da antiga planície com uma delicadeza sombria, refletindo na água parada a imagem turva de uma cidade que já conheceu a felicidade.
Normalmente, mesmo em momentos como este, poucos habitantes ousavam sair de suas moradias, preocupação justificada com o vai e vem de inúmeras tempestades sem aviso prévio. Contudo, um pequeno grupo de indivíduos atravessava as ruas alagadas com certa casualidade, talvez de fato estivessem habituados ao clima frio e chuvoso. Eles desbravaram as ruas estreitas daquela cidade quase morta com fogo nos olhos, um destino, ou talvez um objetivo que os mantinha firmes, arrancando-lhes sorrisos tão sombrios quanto a própria noite em meio àquele ambiente, tão calmo e silencioso, se não fosse a chuva pra nos lembrar de sua tristeza melancólica.
Meu capitão, tem mesmo certeza de que eles vão aparecer no ponto de encontro? perguntou, um homem bem mais cheio que os demais, escondendo seu corpo e rosto com uma capa negra, assim como o resto de seu grupo.
Você conhece aqueles lagostins. Bastou uma sujeira balançar na água que eles caminhariam, de bom grado, pra dentro da boca de um tubarão. a réplica foi sucedida por um gargalhar alto e áspero, digno de um fumante de longa data.
Fumante esse que, por sinal, era o único vestido diferente do grupo. Chapéu negro de abas largas com uma pena de enfeite, longo sobretudo vermelho e babador branco, lembrando de um tradicional traje de capitão da marinha. Sapatos negros meio surrados e longas meias brancas que subiam até as canelas, bastante velhas e rasgadas. Roupas uma vez dignas de um verdadeiro capitão, se não fosse a sujeira e água que surravam sua aparência.
            O silêncio tomou lugar mais uma vez à medida que o grupo se encaminhava ao que deveria ser uma velha casa de madeira. Contudo, de tão velha e quebrada, a moradia parecia-se mais com uma pilha de lixo do que qualquer outra coisa.
            Chegamos, chegamos! Não aguentava mais essa chuva caindo nos meus sapatos! exclamou um outro membro do grupo, este mais magro, tremia de frio, e logo disparou em direção à casa, em busca de calor e proteção contra a chuva.
            Não corra na frente seu…
Não se ouviu o restante da réplica. Assim que o rapaz encapuzado pisou no jardim, as luzes da casa se acenderam e as vigas de madeira foram se reconstruindo sozinhas, como se ela possuísse vida própria. As tábuas de madeira se quebravam e juntavam, até que a escadaria principal na porta da casa transformou-se em uma boca, cheia de farpas afiadas, como se fossem dentes.
            O homem gritou ao perceber o perigo, porém, ao tentar fazer caminho de volta, escorregou em uma poça. Segundos depois, um tapete vermelho disparou da porta principal como uma língua, agarrando as pernas do garoto e arrastando de volta em um único puxão. No segundo seguinte, metade do corpo do rapaz desapareceu para dentro da casa, enquanto a outra metade escorregava por entre as estacas de madeira da estrada, derramando sangue nas plantas do jardim.
            Do outro lado do jardim, a grupo estava paralisado. Os encapuzados tremiam em silêncio e permaneceram ali por mais algum tempo se alguém não tivesse intervindo.
Puta merda João, eu não falei antes de sair que deveríamos ficar juntos antes de entrar? o homem de sobretudo vermelho ascendia um cachimbo, casualmente, já preso em entre seus lábios, provavelmente posto ali durante o espetáculo. Os olhos mortos do homem diziam aos demais que ele, de fato, não dava a mínima para a morte horrível do seu companheiro. Vamos logo, ela já deve estar de barriga cheia. concluiu após esticar seus bigodes grossos.
Enfim, o grupo seguiu seu capitão pelo jardim até a entrada. Os dentes podres da casa foram se retirando, deixando apenas um tapete vermelho de sangue no lugar.
O homem de chapéu fez um gesto com a cabeça para seu subordinado e ele se aviou em abrir a porta.
Enfim do lado de dentro, os homens começaram a tirar suas capas, revelando seus trajes de marujo, alguns até mesmo os sapatos, derramando alguns litros de água ao largá-los no chão.
Finalmente! Se ele demorasse mais, acho que a velhinha teria passado dessa para uma melhor. 
Você veja bem como fala comigo, minha filha, se não faço de você o mesmo que fiz com aquele Lobo cafajeste!
Vozes ecoaram pelo cômodo principal, chamando a atenção do novo grupo que acabara de chegar.
Os marujos encararam as quatro figuras sentadas em uma mesa redonda, todas elas com seus respectivos servos, de prontidão, atrás de suas cadeiras.
Achei que você não viria na sua própria reunião, Capitão… oinc! Estávamos… oinc! À sua espera… quem havia falado era o menor das quatro figuras ali presentes, um porco falante, sentado em uma das cadeiras. Apesar de perturbador para alguns, ele seria bem fofo se não fosse pela enorme cicatriz que rasgava seu focinho em dois. Para privar os demais membros da reunião daquela visão, ele usava um pequeno tapa-olho do lado direito do rosto, onde começava a cicatriz.
De fato Gancho, eu achei que você ia precisar de uma “mãozinha” para achar o caminho até a Casa Monstro… completou uma voz sombria que provinha do maior dos indivíduos da sala, vestido com uma forte armadura negra de metal. Corpo grande e musculoso, capaz de levantar dois homens adultos, os marujos tremeram de medo ao percebê-lo.
Vamos deixar as brincadeiras pra depois, lagostim, antes que eu “perca a cabeça”. retrucou o Capitão, ascendendo novamente seu cachimbo com um sorriso provocativo no rosto, apontando com os olhos para o lugar onde deveria haver uma cabeça no cavaleiro sentado em sua frente.
Antes que o grande Cavaleiro se levantasse para começar uma briga, seus subordinados fizeram o favor de acalmá-lo. O capitão colocou seu chapéu sobre a mesa e sentou-se com as outras figuras ali presentes.
Muito bem, senhoras, senhores… e porco, perdoem-me pelo atraso, mas temos algo mais importante para tratar hoje. lembrou, tragando em seu cachimbo com desdém, ao colocar os pés cruzados sobre a mesa.
Os demais convidados pareceram acalmar os ânimos por um momento, pois, todos demonstravam um interesse peculiar no assunto em questão.
Acho que todos aqui já ouviram falar das… armadilhas de rosto. o ar de deboche na voz do moreno foi cortado pelo olhar afiado e sombrio que direcionou aos seus convidados.
Durante alguns segundos de silêncio que mais pareceram uma eternidade, a casa ficou em total silêncio. Os líderes das cinco gangues se entreolharam com expressões indecifráveis em seus rostos, até que, enfim, a mais jovem entre os três se pronunciou.
Os rumores se espalharam por toda a cidade… Esses objetos apareceram do nada e flutuaram pelo rio até desaparecer. Dizem que essas coisas possuem poderes mágicos, mas que podem capturar a imagem do rosto de quem não souber utilizá-las. a mulher, pálida como a neve, não podia deixar de encarar Gancho com certa apreensão, contudo, para trazer esse assunto à mesa, ele devia estar escondendo mais alguma coisa.
Vejo que anda bem informada, Branquinha. fazendo um estardalhaço, o capitão se pôs de pé, derrubando a própria cadeira atrás de si; os braços abertos em magnificência. Por isso, vim propor um jogo! os convidados logo começaram a murmurar deboches, mas calaram-se de uma vez com a sequência do discurso. Eu proponho uma caça ao tesouro: uma caçada as armadilhas de rosto! Aquele que conseguir se apoderar das cinco armadilhas será nomeado o novo e definitivo líder da nossa tão amada cidade de Kinogate!
Os marujos ao lado de seu capitão apoiaram sua decisão com gritos.
Você é maluco, Gancho, ainda mais louco do que eu pensava! Está disposto a perder até o rosto por isso. exclamou o Cavaleiro, rindo de deboche, apesar do evidente inconformismo.
Está com medo, meu amigo sem cabeça? Não é como se você tivesse muito a perder com esse jogo! retrucou, caindo na gargalhada com seus marujos, ao mesmo tempo que provocou a ira do maior.
Como ousa, seu vagabundo aleijado! a força com que bateu na ponta da mesa praticamente levantou-a.
Ei, vamos ficar calmos, certo? Não queremos que você perca nada do pescoço pra baixo… o sorriso sádico do capitão acompanhou-se de um movimento rápido de mão em direção a cintura, onde agarrou a uma espada ainda embainhada, mas pronta para voar em direção ao rival.
Um estalar de dedos, quase inaudível naquele recinto tão agitado, desencadeou um movimento inesperado.
Ao sentir algo pontiagudo e gelado em sua virilha, o pirata foi obrigado a mirar os olhos debaixo da mesa. Ali, encontravam-se dois anões de jardim, marcados de cicatrizes profundas por todo corpo, eles riam de forma macabra ao presenciar a surpresa do maior ao percebê-los.
Do outro lado da mesa, o Cavaleiro sem Cabeça parecia ter que lidar com o mesmo problema.
Esses homens de hoje em dia são tão brutos, não conseguem ter uma conversa pacífica por cinco minutos. A morena de pele pálida que se sentava ao lado do porco, falsificava uma expressão penosa em direção aos homens sentados à mesa.
O capitão riu, impressionado e conformou-se em puxar sua cadeira de volta para sentar-se, alguns passos mais distantes da mesa dessa vez.
Então… oinc, você está nos dizendo que abriria mão dessa, oinc... rixa com qualquer um de nós se, oinc… alguém achar as cinco fotos? o porco apoiou o queixo sobre os cascos, encarando o pirata de forma presunçosa, isso até levar um cascudo de senhora sentada do seu outro lado.
Deixe de ser besta, sua mula. Se conhece o capitão, sabe que ele tem seus truques para ganhar um jogo que ele mesmo criou. Trapaceiro de uma figa. a vovozinha tentou cuspir na cara do homem, mas acabou deixando a baba escorrer pelo queixo. Usou então sua manta de pele de lobo para limpar-se, com alguma dificuldade.
            Todos os convidados encararam o pirata do Gancho descrentes das palavras do mesmo.
            Não dessa vez. Como quero que este seja um jogo limpo, não haverá trapaças. A única regra do jogo é que apenas um dos nossos capangas possa procurar pelos artefatos. Vocês topam?
            Mais um momento de silêncio invadiu a sala, os líderes encaravam a mesa, o teto, eles mesmos, seus capangas, bastante sérios, contudo, intrigados com a proposta.
            O Capitão estava prestes a acender seu cachimbo novamente quando escutou a voz do rival fazer-se presente na sala.
Nós aceitamos o jogo. a voz sombria do cavaleiro sem cabeça era imbuída de apreensão, mas também demonstrava sua determinação em conseguir as tais armadilhas de rosto e seus poderes mágicos.
Neste caso… que comecem os jogos! Elevando o braço o pirata cuspiu em sua mão e estendeu aos convidados, do outro lado da mesa. 
O Cavaleiro estava pronto para apertá-la, quando percebeu que se tratava do Gancho do traiçoeiro pirata. Seu corpo moveu-se ligeiramente, ao mesmo tempo que interrompeu o gesto, dando a intenção de que percebera a pegadinha.
Opa, mão errada…
Enfim cuspiu na outra mão e cumprimentou os convidados antes que todos partissem.



A bordo do navio de velas vermelhas listradas de preto, Jolly Roger, o pirata do Gancho caminhava meio dançando até o porão. Descendo o pequeno hall de escada do navio, o capitão deu de cara com uma porta de madeira escura. Abrindo-a revelou um pequeno quarto, banhado apenas pela pouca luz que a porta aberta lhe proporcionava.
Nele, encontrava-se uma jovem mulher, sentada sobre uma cama malfeita, bem mais bonita que qualquer um dos piratas naquela embarcação. Ao ouvir o som agudo do ranger da madeira do piso, ela virou o rosto em direção à porta. Os longos cabelos negros, revelando um belo par de olhos verde água, enfeitando seu rosto magro com uma bandana amarrada sobre a testa. 
Ela pôs-se de pé sobre as botas negras de cano alto, tirando o que podia da poeira de seu sobretudo branco detalhado com fitas dourada e cumprimentou o capitão de joelhos.
Ao seu dispor, meu capitão… 
Apronte-se Aurora, parece que o jogo vai acontecer, afinal. informou o superior, ascendendo seu cachimbo, casualmente. Você já sabe o que fazer.

Nenhum comentário:

Postar um comentário