Nietzsche
segundo Camus
Por
Luca Szaniecki Cocco
Esse
artigo tem como objetivo esclarecer uma dúvida recorrente do
artigo sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol, uma análise anti-dialética, no que diz respeito à
Nietzsche. Tentarei aprofundar, com mais liberdade, o que Camus critica no pensamento
de Nietzsche e para entender melhor as razões dessas críticas.
Primeiramente, existem dois aspectos a serem explorados: por um lado, a afirmação de Albert Camus de que Nietzsche teria inspirado o pensamento
nazista, e pelo outro, o mais complicado, a percepção de Camus de determinismo histórico no pensamento de Nietzsche, assim como ele
viu em Hegel e Marx. Começando pelo mais fácil, estudaremos as
relações entre Nietzsche e o nazismo do ponto de vista de
Camus. Depois, veremos qual o principal problema segundo Camus na
filosofia do controverso pensador alemão. Para isso utilizaremos principalmente o capítulo que Camus dedica a Nietzsche em O Homem Revoltado de
Camus.
No pensamento de Camus, o Homem se revolta contra sua condição enquanto
mortal, o que o leva a se revoltar contra Deus (ou qualquer forma de
divindade ou necessidade). O problema então se concentra nos
meios da revolta e também como os homens decidem “substituir” o
divino. Depois da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente durante toda a
primeira metade do século XX, Camus apreende os dois principais
movimentos de revolta que se tornaram totalitários. Por um lado, a
dialética e o materialismo histórico de Hegel e Marx influenciaram
a Revolução Russa. Do outro, Camus situa a filosofia de
Nietzsche que teria influenciado o fascismo e o nazismo (embora
Mussolini dissesse ser um grande admirador de Hegel). Ambos os lados, apesar de suas diferenças, tinham algo em comum que Camus resume bastante
claramente: “Todas as revoluções modernas acabaram fortalecendo o
Estado”. Nesse caso, ele não se refere apenas ao nazismo e ao comunismo mas também a todas as revoluções da era moderna, inclusive a Revolução francesa (basta conferir o terrível resultado do regime do terror jacobino -de Robespierre).
Seja na Revolução de Outubro de 1917, seja na Marcha
sobre Roma de 1922, ou na posse de Hitler em 1933, a “cidadela de
Deus” (“la cité de Dieu”) foi destruída e substituída por um
“Estado terrorista” (CAMUS,1951). É preciso ter cuidado: a destruição da
cidadela de Deus não é concreta, nem completa, pois é preciso
considerá-la como uma metáfora de Camus para ser entendida como substituição da
divindade e da necessidade por novas figuras e instâncias. A religião não era necessariamente destruída no processo: o fascismo, por exemplo,
continuava a ressaltar a importância da religião, o que não era o
caso na União Soviética onde padres e igrejas eram eliminadas. Em todo caso, a "servidão e o terror levaram à
concentração", seja no gulag ou nos campos nazifascistas (e um leitor do século XXI também adicionaria o laogai chinês).
Para
Camus, a revolução do século XX mata “o que resta de Deus”
(fazendo referência ao próprio Nietzsche e sua famosa citação de que “Deus está morto”) e consagra o que ele chama de “niilismo
histórico”. Este conceito (ou até mesmo a ideologia cujos efeitos são vistos por todo o espectro político, da esquerda à direita) é dividido em dois movimentos: por um lado o "irracional", incarnado pelo Fascismo e Nazismo, que Camus chama de
“mestre da morte e criador de sub-humanos”, pelo outro, pela
racionalidade absoluta do Comunismo marxista/leninista/stalinista que “mutila o homem e
suas paixões”. O primeiro seria então o “advento do
super-homem nietzschiano”(CAMUS,1951) e é esse que estudaremos com mais
detalhes nesse artigo. Camus poẽ nazismo e comunismo no mesmo saco
do “niilismo histórico” e os condena: quando ele fala dos
processos de Nuremberg, marco histórico no qual diversos oficiais nazistas foram
condenados pelos seus crimes contra a humanidade, Camus fala que “era preciso julgar as
responsabilidades históricas do niilismo ocidental”.
Antes
de entender o papel de Nietzsche nisso tudo, é preciso estudar o entendimento de
Camus sobre o nazismo e fascismo. De fato, Camus descreve o nazismo
como um “movimento perpétuo de negação” que nasceu em uma nação
onde nenhum “valor se sustentava mais” ("aucune valeur ne tenait plus")
durante a República de Weimar, no primeiro pós-guerra. É por essa razão que,
em 1933, Hitler chegou ao poder, pois o povo “aceitou escolher um
valor degradado de alguns homens”, e impôs esses valores a toda
uma civilização. Hitler incarnava uma negação total e defendia
valores retrógrados e por isso seu projeto ficou insustentável: “A Alemanha
colapsou por ter iniciado uma luta imperial com um pensamento
político provincial"(CAMUS,1951). Ao perceber que não tinha mais chances de vencer a guerra que havia começado,
cercado pelos americanos e britânicos (e franceses) pelo lado
ocidental e pelos soviéticos na frente oriental, Hitler resistiu até o último segundo, pois, segundo seus próprios princípios: “Se o povo alemão
não é capaz de vencer, ele não é digno de viver”(CAMUS,1951). Se trancou em seu bunker e esperou. Milhões de mortos por nada. Suicídio coletivo.
Mas
por que esse regime, tão sanguinário e retrógrado, seria uma
derivação do pensamento de um filósofo que quebrou tantos tabus
como Nietzsche? Primeiramente, porque o seu conceito de
“super-homem”(Übermensch)
foi
interpretado de maneira perigosa pelo fascismo e nazismo. Esse conceito,
inicialmente tomado como uma superioridade filosófica, acabou se tornando um termo patriótico, romano para Mussolini e racial para Hitler com seu ideal do homem ariano,
germânico. É verdade que essa interpretação já foi analisada
como um equívoco, e Camus estava ciente disso, porém é inegável que essa
conexão aconteceu. De fato, Camus sabia que Nietzsche fora utilizado como
justificativa de pensamentos com os quais ele discordava:
Nietzsche era crítico do que ele mesmo chamava de “deformidade antissemita”,
por exemplo. Nietzsche nunca teria sido um nazista. Nesse
caso, ele foi realmente mal interpretado e apropriado, e Camus o reconhece.
Contextualizando, Camus escreveu o Homem Revoltado em
1951 e morreu em 1960, prematuramente. Consequentemente, ele não conheceu o “renascimento”
de Nietzsche durante os anos 60 por meio do trabalho de jovens filósofos (franceses
principalmente) como Michel Foucault e sobretudo Gilles Deleuze. Até essa época, Nietzsche
ainda era considerado um “filósofo do inimigo” e, nesse caso, por
ter relativizado a importância do pensamento nietzschiano no
nazismo, Camus estava à frente de seu tempo. Ora, será preciso
esperar os anos 60 para que Nietzsche pare de ser conhecido como um
inimigo e passe a ser reconhecido pelos seus aportes ao pensamento crítico da dominação.
Camus, como dito rapidamente no último parágrafo, diminui a suposta responsabilidade de Nietzsche no pensamento nazista e lamenta o uso que fizeram de sua filosofia em um
pequeno parágrafo: “Na
história da inteligência, exceção feita por Marx, a aventura de
Nietzsche não tem equivalente; jamais terminaremos de consertar a
injustiça feita-lhe [...] até Nietzsche e o nacional-socialismo,
não existiam exemplos de pensamentos inteiros esclarecidos pela
nobreza e pelos rasgos (déchirements em francês)
de
uma alma excepcional que fossem ilustrados aos olhos do mundo por um
desfile de mentiras e pelo medonho monte de cadáveres
concentracionistas”(CAMUS, 1951).
Porém, ao mesmo tempo que relativiza a responsabilidade de Nietzsche, Camus vê um problema grave, muito mais complexo, na filosofia de Nietzsche e, por essa razão, ele dedica um capítulo de sua obra
para analisar esse problema: "Nietzsche e o Niilismo". Antes de mais nada, é certo que Nietzsche era crítico do niilismo tal como o conhecia, porém, a crítica de Camus é bem mais profunda e digna de ser estudada. O capítulo começa com uma frase emblemática de
Nietzsche “Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade de
Deus, é assim que entregaremos o mundo”. A frase ilustra, em
poucas palavras, o que Camus vê de problemático em Nietzsche e na
sua relação com o niilismo: “Com Nietzsche, o niilismo parece
se tornar profético” e, algumas páginas depois, “consciente”.
Camus explica que a lógica de Nietzsche, assim como a dialética,
passa pela visão de um futuro: a revolução dialética “substitui
Deus pelo futuro". A diferença é que Nietzsche não exalta esse
futuro, esse apocalipse, essa singularidade e vê esse conceito no ângulo do fatalismo e não como o fim (glorioso) da história hegeliano.
Todo o método crítico de Nietzsche parte do seu ataque ao
cristianismo, não enquanto religião, mas enquanto moral. O mundo,
segundo Nietzsche não possui sentido (ele parece ter previsto o pensamento do absurdo do século XX, que,inclusive, influenciou o jovem Albert Camus)
e nem finalidade: “O mundo marcha à aventura, ele não tem
finalidade”.Nessa perspectiva, o mundo não pode ser julgado como bem ou mal pois seu
valor reside em si mesmo. Qualquer julgamento moral sobre o mundo é
então um ataque à própria vida e escraviza o homem. Quando
Nietzsche afirma que “Deus está morto”, ele não faz qualquer
ataque à religião cristã enquanto tal (ele admirava, por exemplo,
a figura de Jesus Cristo) e, tampouco tem qualquer responsabilidade
sobre essa morte: ele encontrou Deus já morto. Deus, nesse mundo sem direção, sem rumo, segundo Nietzsche, é simplesmente inútil pois ele não deseja nada. O
mesmo raciocínio é aplicado ao socialismo que é descrito como um
“cristianismo degenerado”. O
único elemento que parece mover o mundo é essa vontade de se
perpetuar que Nietzsche define como “vontade de potência” (Wille
zur), parecido com o "conatus" de Espinoza. Ora, sendo uma vontade, um desejo, Deus não a possui e é, portanto, inútil.
Nietzsche
segundo Camus
Por
Luca Szaniecki Cocco
Esse
artigo tem como objetivo esclarecer uma dúvida recorrente do
artigo sobre Deus e o Diabo na Terra do Sol, uma análise anti-dialética, no que diz respeito à
Nietzsche. Tentarei aprofundar, com mais liberdade, o que Camus critica no pensamento
de Nietzsche e para entender melhor as razões dessas críticas.
Primeiramente, existem dois aspectos a serem explorados: por um lado, a afirmação de Albert Camus de que Nietzsche teria inspirado o pensamento
nazista, e pelo outro, o mais complicado, a percepção de Camus de determinismo histórico no pensamento de Nietzsche, assim como ele
viu em Hegel e Marx. Começando pelo mais fácil, estudaremos as
relações entre Nietzsche e o nazismo do ponto de vista de
Camus. Depois, veremos qual o principal problema segundo Camus na
filosofia do controverso pensador alemão. Para isso utilizaremos principalmente o capítulo que Camus dedica a Nietzsche em O Homem Revoltado de
Camus.
No pensamento de Camus, o Homem se revolta contra sua condição enquanto
mortal, o que o leva a se revoltar contra Deus (ou qualquer forma de
divindade ou necessidade). O problema então se concentra nos
meios da revolta e também como os homens decidem “substituir” o
divino. Depois da Segunda Guerra Mundial, mais precisamente durante toda a
primeira metade do século XX, Camus apreende os dois principais
movimentos de revolta que se tornaram totalitários. Por um lado, a
dialética e o materialismo histórico de Hegel e Marx influenciaram
a Revolução Russa. Do outro, Camus situa a filosofia de
Nietzsche que teria influenciado o fascismo e o nazismo (embora
Mussolini dissesse ser um grande admirador de Hegel). Ambos os lados, apesar de suas diferenças, tinham algo em comum que Camus resume bastante
claramente: “Todas as revoluções modernas acabaram fortalecendo o
Estado”. Nesse caso, ele não se refere apenas ao nazismo e ao comunismo mas também a todas as revoluções da era moderna, inclusive a Revolução francesa (basta conferir o terrível resultado do regime do terror jacobino -de Robespierre).
Seja na Revolução de Outubro de 1917, seja na Marcha
sobre Roma de 1922, ou na posse de Hitler em 1933, a “cidadela de
Deus” (“la cité de Dieu”) foi destruída e substituída por um
“Estado terrorista” (CAMUS,1951). É preciso ter cuidado: a destruição da
cidadela de Deus não é concreta, nem completa, pois é preciso
considerá-la como uma metáfora de Camus para ser entendida como substituição da
divindade e da necessidade por novas figuras e instâncias. A religião não era necessariamente destruída no processo: o fascismo, por exemplo,
continuava a ressaltar a importância da religião, o que não era o
caso na União Soviética onde padres e igrejas eram eliminadas. Em todo caso, a "servidão e o terror levaram à
concentração", seja no gulag ou nos campos nazifascistas (e um leitor do século XXI também adicionaria o laogai chinês).
Para
Camus, a revolução do século XX mata “o que resta de Deus”
(fazendo referência ao próprio Nietzsche e sua famosa citação de que “Deus está morto”) e consagra o que ele chama de “niilismo
histórico”. Este conceito (ou até mesmo a ideologia cujos efeitos são vistos por todo o espectro político, da esquerda à direita) é dividido em dois movimentos: por um lado o "irracional", incarnado pelo Fascismo e Nazismo, que Camus chama de
“mestre da morte e criador de sub-humanos”, pelo outro, pela
racionalidade absoluta do Comunismo marxista/leninista/stalinista que “mutila o homem e
suas paixões”. O primeiro seria então o “advento do
super-homem nietzschiano”(CAMUS,1951) e é esse que estudaremos com mais
detalhes nesse artigo. Camus poẽ nazismo e comunismo no mesmo saco
do “niilismo histórico” e os condena: quando ele fala dos
processos de Nuremberg, marco histórico no qual diversos oficiais nazistas foram
condenados pelos seus crimes contra a humanidade, Camus fala que “era preciso julgar as
responsabilidades históricas do niilismo ocidental”.
Antes
de entender o papel de Nietzsche nisso tudo, é preciso estudar o entendimento de
Camus sobre o nazismo e fascismo. De fato, Camus descreve o nazismo
como um “movimento perpétuo de negação” que nasceu em uma nação
onde nenhum “valor se sustentava mais” ("aucune valeur ne tenait plus")
durante a República de Weimar, no primeiro pós-guerra. É por essa razão que,
em 1933, Hitler chegou ao poder, pois o povo “aceitou escolher um
valor degradado de alguns homens”, e impôs esses valores a toda
uma civilização. Hitler incarnava uma negação total e defendia
valores retrógrados e por isso seu projeto ficou insustentável: “A Alemanha
colapsou por ter iniciado uma luta imperial com um pensamento
político provincial"(CAMUS,1951). Ao perceber que não tinha mais chances de vencer a guerra que havia começado,
cercado pelos americanos e britânicos (e franceses) pelo lado
ocidental e pelos soviéticos na frente oriental, Hitler resistiu até o último segundo, pois, segundo seus próprios princípios: “Se o povo alemão
não é capaz de vencer, ele não é digno de viver”(CAMUS,1951). Se trancou em seu bunker e esperou. Milhões de mortos por nada. Suicídio coletivo.
Mas
por que esse regime, tão sanguinário e retrógrado, seria uma
derivação do pensamento de um filósofo que quebrou tantos tabus
como Nietzsche? Primeiramente, porque o seu conceito de
“super-homem”(Übermensch)
foi
interpretado de maneira perigosa pelo fascismo e nazismo. Esse conceito,
inicialmente tomado como uma superioridade filosófica, acabou se tornando um termo patriótico, romano para Mussolini e racial para Hitler com seu ideal do homem ariano,
germânico. É verdade que essa interpretação já foi analisada
como um equívoco, e Camus estava ciente disso, porém é inegável que essa
conexão aconteceu. De fato, Camus sabia que Nietzsche fora utilizado como
justificativa de pensamentos com os quais ele discordava:
Nietzsche era crítico do que ele mesmo chamava de “deformidade antissemita”,
por exemplo. Nietzsche nunca teria sido um nazista. Nesse
caso, ele foi realmente mal interpretado e apropriado, e Camus o reconhece.
Contextualizando, Camus escreveu o Homem Revoltado em
1951 e morreu em 1960, prematuramente. Consequentemente, ele não conheceu o “renascimento”
de Nietzsche durante os anos 60 por meio do trabalho de jovens filósofos (franceses
principalmente) como Michel Foucault e sobretudo Gilles Deleuze. Até essa época, Nietzsche
ainda era considerado um “filósofo do inimigo” e, nesse caso, por
ter relativizado a importância do pensamento nietzschiano no
nazismo, Camus estava à frente de seu tempo. Ora, será preciso
esperar os anos 60 para que Nietzsche pare de ser conhecido como um
inimigo e passe a ser reconhecido pelos seus aportes ao pensamento crítico da dominação.
Camus, como dito rapidamente no último parágrafo, diminui a suposta responsabilidade de Nietzsche no pensamento nazista e lamenta o uso que fizeram de sua filosofia em um
pequeno parágrafo: “Na
história da inteligência, exceção feita por Marx, a aventura de
Nietzsche não tem equivalente; jamais terminaremos de consertar a
injustiça feita-lhe [...] até Nietzsche e o nacional-socialismo,
não existiam exemplos de pensamentos inteiros esclarecidos pela
nobreza e pelos rasgos (déchirements em francês)
de
uma alma excepcional que fossem ilustrados aos olhos do mundo por um
desfile de mentiras e pelo medonho monte de cadáveres
concentracionistas”(CAMUS, 1951).
Porém, ao mesmo tempo que relativiza a responsabilidade de Nietzsche, Camus vê um problema grave, muito mais complexo, na filosofia de Nietzsche e, por essa razão, ele dedica um capítulo de sua obra
para analisar esse problema: "Nietzsche e o Niilismo". Antes de mais nada, é certo que Nietzsche era crítico do niilismo tal como o conhecia, porém, a crítica de Camus é bem mais profunda e digna de ser estudada. O capítulo começa com uma frase emblemática de
Nietzsche “Nós negamos Deus, nós negamos a responsabilidade de
Deus, é assim que entregaremos o mundo”. A frase ilustra, em
poucas palavras, o que Camus vê de problemático em Nietzsche e na
sua relação com o niilismo: “Com Nietzsche, o niilismo parece
se tornar profético” e, algumas páginas depois, “consciente”.
Camus explica que a lógica de Nietzsche, assim como a dialética,
passa pela visão de um futuro: a revolução dialética “substitui
Deus pelo futuro". A diferença é que Nietzsche não exalta esse
futuro, esse apocalipse, essa singularidade e vê esse conceito no ângulo do fatalismo e não como o fim (glorioso) da história hegeliano.
Todo o método crítico de Nietzsche parte do seu ataque ao
cristianismo, não enquanto religião, mas enquanto moral. O mundo,
segundo Nietzsche não possui sentido (ele parece ter previsto o pensamento do absurdo do século XX, que,inclusive, influenciou o jovem Albert Camus)
e nem finalidade: “O mundo marcha à aventura, ele não tem
finalidade”.Nessa perspectiva, o mundo não pode ser julgado como bem ou mal pois seu
valor reside em si mesmo. Qualquer julgamento moral sobre o mundo é
então um ataque à própria vida e escraviza o homem. Quando
Nietzsche afirma que “Deus está morto”, ele não faz qualquer
ataque à religião cristã enquanto tal (ele admirava, por exemplo,
a figura de Jesus Cristo) e, tampouco tem qualquer responsabilidade
sobre essa morte: ele encontrou Deus já morto. Deus, nesse mundo sem direção, sem rumo, segundo Nietzsche, é simplesmente inútil pois ele não deseja nada. O
mesmo raciocínio é aplicado ao socialismo que é descrito como um
“cristianismo degenerado”. O
único elemento que parece mover o mundo é essa vontade de se
perpetuar que Nietzsche define como “vontade de potência” (Wille
zur), parecido com o "conatus" de Espinoza. Ora, sendo uma vontade, um desejo, Deus não a possui e é, portanto, inútil.
Qual
seria o problema dessa lógica anti-moralista ? Para Camus, esse
pensamento acabou abrindo portas para um niilismo tóxico onde “nada
é verdade, tudo é permitido” e isso porque Nietzsche acaba se
contradizendo: “ele coloniza ao benefício do niilismo valores que,
tradicionalmente, foram considerados como freios ao niilismo”. O
niilismo de Nietzsche, segundo Camus, não é o fato de não
acreditar em nada mas sim não acreditar no que é. Se o julgamento
moral julga o mundo como ele é, segundo
o que ele deveria ser, o niilismo simplesmente não acredita no
mundo como ele é, o que lembra a negação total de Hitler. O objetivo de Nietzsche é levar o homem à um
renascimento, de o dirigir em um mundo sem direção, sem Deus, sem
ídolos: esse é o nascimento do super-homem. Ora, é
exatamente uma lógica profética, histórica, que Camus tanto
critica.
Antes
de se tornar um super-homem, qual o papel do homem nesse mundo sem
Deus nem moral? Ele se torna um ser solitário e sem mestre, supostamente livre, mas essa
liberdade não é fácil pois ele se torna responsável por elaborar a
ordem e a lei nesse mundo sem rumo. É assim que Nietzsche defende sua ideia de liberdade
de espírito como uma luta constante (um pouco como Camus define sua
noção de revolta) onde
a “emancipação vem com a aceitação de novos deveres”. O
problema é que o indivíduo acaba desenvolvendo uma “joie du
devenir” ("alegria do tornar-se", traduzindo literalmente), o que se manifesta por uma submissão absoluta ao
infinito “devenir”, a mesma lógica que na dialética de Hegel. O novo
homem-deus de Nietzsche, que cria suas próprias regras enquanto tenta
reviver um Deus há muito tempo morto, é conformista, contrário à
revolta, pois ele “diz sim ao mundo”, diz sim à sua condição, e se “inclina diante da
eternidade da espécie e do grande ciclo do tempo”(CAMUS,1951). Ele cessa de
ser um indivíduo para se perder no “destino da espécie e do
movimento eterno dos mundos sem rumo”. Tudo
isso acaba numa contradição: o super-homem, auge do
individualismo mais absoluto, cai aos pés da "história da espécie"(CAMUS,1951) em
geral.
Ainda
mais, na sua fascinação pela figura do artista dionisíaco,
Nietzsche acabou imaginando tiranos artistas ( com Hitler sendo o
melhor dos exemplos) e “fez da raça um caso particular da
espécie”. E essa raça é caracterizada por Camus como uma “raça
de senhores incultos ditando a vontade de potência“ e que contribuiu à ideia de “deformidade antisemita” tão detestada por Nietzsche. Além disso, como dito antes, há um certo conformismo no
pensamento de Nietzsche que Camus critica. Primeiramente, se é
preciso dizer sim ao mundo, Camus diz que isso pressupoẽ dizer sim ao
assassinato, princípio que ele critica tanto em Nietzsche quanto nos textos do Marquis de Sade. Em segundo lugar, se, retomando um pouco
a dialética de Hegel, se o escravo diz sim, ele diz sim à
existência do mestre e à sua própria dor. Porém, se o mestre diz sim, ele diz sim à escravidão e à dor dos outros. Esse “sim” acaba
então favorecendo o mais forte: o mestre. A mesma lógica é aplicada, paradoxalmente na dialética, que deveria ser progressista, de Hegel. Até agora a interpretação camusiana de Nietzsche pode resumir-se em uma palavra: contradição.
Marx
e Nietzsche “substituíram o além pelo mais tarde”, e traíram os
“gregos e Jesus que substituíam o além pelo agora mesmo”(CAMUS,1951). O que
Camus conclui é que Nietzsche também tinha um pensamento histórico
semelhante ao marxismo dialético: no seu caso, Nietzsche
profetizava a super-humanidade que leva consequentemente à criação de "sub-homens". Enquanto Marx, profeta da produção, previa uma sociedade sem classes, Nietzsche profetizava novos homens-deuses, seguidores de suas próprias vontades, obedecendo à sua natureza dada. A
diferença é sutil, porém importante: “Para Marx, a natureza é o
que subjugamos para obedecer à história, para Nietzsche é o que
obedecemos para subjugar a história”. Na
concepção de revolta de Nietzsche, Camus diz que ela acaba em
“cesarismo biológico ou histórico”, fazendo clara referência
ao nazismo. A prisão de Deus e da moral é substituída pela
prisão da história, o que leva à “consagração do niilismo que
Nietzsche pretendeu vencer”.
Embora
seja crítico de Nietzsche, Camus é bastante cuidadoso ao criticá-lo pois sabe que todas essas consequências não eram desejadas: “Se o resultado final do grande movimento de revolta do século XIX
e XX fosse para ser essa implacável servidão, não deveríamos então
virar as costas para a revolta e retomar o grito desesperado de
Nietzsche na sua época: Minha consciência e a vossa não são mais
que uma só!”. Se Camus critica esse pensamento, como faz com Marx, é
com grande respeito e admiração e é mais que uma simples análise do
uso racista do conceito de super-homem. É errado dizer que sua crítica é
superficial ou antiquada.
Albert
Camus, embora não tenha vivido os anos 60, foi um precursor
dessa época e teve um grande papel no renascimento futuro do pensamento de Nietzsche realizado por Georges
Bataille, Pierre Klossowski, Jean Wahl, Gilles Deleuze, Michel Foucault, entre outros. Camus sempre foi um grande leitor e
admirador de Nietzsche, mesmo em uma época que o considerava o
“filósofo do inimigo”.
Espero que esse artigo tenha esclarecido algumas dúvidas. A relação entre esses dois filósofos é extremamente delicada e, para ser sincero, nem tudo é compreensível nas páginas de Camus dedicadas à Nietzsche, pelo menos não para mim, amador desses dois grandes pensadores.
Qual
seria o problema dessa lógica anti-moralista ? Para Camus, esse
pensamento acabou abrindo portas para um niilismo tóxico onde “nada
é verdade, tudo é permitido” e isso porque Nietzsche acaba se
contradizendo: “ele coloniza ao benefício do niilismo valores que,
tradicionalmente, foram considerados como freios ao niilismo”. O
niilismo de Nietzsche, segundo Camus, não é o fato de não
acreditar em nada mas sim não acreditar no que é. Se o julgamento
moral julga o mundo como ele é, segundo
o que ele deveria ser, o niilismo simplesmente não acredita no
mundo como ele é, o que lembra a negação total de Hitler. O objetivo de Nietzsche é levar o homem à um
renascimento, de o dirigir em um mundo sem direção, sem Deus, sem
ídolos: esse é o nascimento do super-homem. Ora, é
exatamente uma lógica profética, histórica, que Camus tanto
critica.
Antes
de se tornar um super-homem, qual o papel do homem nesse mundo sem
Deus nem moral? Ele se torna um ser solitário e sem mestre, supostamente livre, mas essa
liberdade não é fácil pois ele se torna responsável por elaborar a
ordem e a lei nesse mundo sem rumo. É assim que Nietzsche defende sua ideia de liberdade
de espírito como uma luta constante (um pouco como Camus define sua
noção de revolta) onde
a “emancipação vem com a aceitação de novos deveres”. O
problema é que o indivíduo acaba desenvolvendo uma “joie du
devenir” ("alegria do tornar-se", traduzindo literalmente), o que se manifesta por uma submissão absoluta ao
infinito “devenir”, a mesma lógica que na dialética de Hegel. O novo
homem-deus de Nietzsche, que cria suas próprias regras enquanto tenta
reviver um Deus há muito tempo morto, é conformista, contrário à
revolta, pois ele “diz sim ao mundo”, diz sim à sua condição, e se “inclina diante da
eternidade da espécie e do grande ciclo do tempo”(CAMUS,1951). Ele cessa de
ser um indivíduo para se perder no “destino da espécie e do
movimento eterno dos mundos sem rumo”. Tudo
isso acaba numa contradição: o super-homem, auge do
individualismo mais absoluto, cai aos pés da "história da espécie"(CAMUS,1951) em
geral.
Ainda
mais, na sua fascinação pela figura do artista dionisíaco,
Nietzsche acabou imaginando tiranos artistas ( com Hitler sendo o
melhor dos exemplos) e “fez da raça um caso particular da
espécie”. E essa raça é caracterizada por Camus como uma “raça
de senhores incultos ditando a vontade de potência“ e que contribuiu à ideia de “deformidade antisemita” tão detestada por Nietzsche. Além disso, como dito antes, há um certo conformismo no
pensamento de Nietzsche que Camus critica. Primeiramente, se é
preciso dizer sim ao mundo, Camus diz que isso pressupoẽ dizer sim ao
assassinato, princípio que ele critica tanto em Nietzsche quanto nos textos do Marquis de Sade. Em segundo lugar, se, retomando um pouco
a dialética de Hegel, se o escravo diz sim, ele diz sim à
existência do mestre e à sua própria dor. Porém, se o mestre diz sim, ele diz sim à escravidão e à dor dos outros. Esse “sim” acaba
então favorecendo o mais forte: o mestre. A mesma lógica é aplicada, paradoxalmente na dialética, que deveria ser progressista, de Hegel. Até agora a interpretação camusiana de Nietzsche pode resumir-se em uma palavra: contradição.
Marx
e Nietzsche “substituíram o além pelo mais tarde”, e traíram os
“gregos e Jesus que substituíam o além pelo agora mesmo”(CAMUS,1951). O que
Camus conclui é que Nietzsche também tinha um pensamento histórico
semelhante ao marxismo dialético: no seu caso, Nietzsche
profetizava a super-humanidade que leva consequentemente à criação de "sub-homens". Enquanto Marx, profeta da produção, previa uma sociedade sem classes, Nietzsche profetizava novos homens-deuses, seguidores de suas próprias vontades, obedecendo à sua natureza dada. A
diferença é sutil, porém importante: “Para Marx, a natureza é o
que subjugamos para obedecer à história, para Nietzsche é o que
obedecemos para subjugar a história”. Na
concepção de revolta de Nietzsche, Camus diz que ela acaba em
“cesarismo biológico ou histórico”, fazendo clara referência
ao nazismo. A prisão de Deus e da moral é substituída pela
prisão da história, o que leva à “consagração do niilismo que
Nietzsche pretendeu vencer”.
Embora
seja crítico de Nietzsche, Camus é bastante cuidadoso ao criticá-lo pois sabe que todas essas consequências não eram desejadas: “Se o resultado final do grande movimento de revolta do século XIX
e XX fosse para ser essa implacável servidão, não deveríamos então
virar as costas para a revolta e retomar o grito desesperado de
Nietzsche na sua época: Minha consciência e a vossa não são mais
que uma só!”. Se Camus critica esse pensamento, como faz com Marx, é
com grande respeito e admiração e é mais que uma simples análise do
uso racista do conceito de super-homem. É errado dizer que sua crítica é
superficial ou antiquada.
Albert
Camus, embora não tenha vivido os anos 60, foi um precursor
dessa época e teve um grande papel no renascimento futuro do pensamento de Nietzsche realizado por Georges
Bataille, Pierre Klossowski, Jean Wahl, Gilles Deleuze, Michel Foucault, entre outros. Camus sempre foi um grande leitor e
admirador de Nietzsche, mesmo em uma época que o considerava o
“filósofo do inimigo”.
Espero que esse artigo tenha esclarecido algumas dúvidas. A relação entre esses dois filósofos é extremamente delicada e, para ser sincero, nem tudo é compreensível nas páginas de Camus dedicadas à Nietzsche, pelo menos não para mim, amador desses dois grandes pensadores.
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