domingo, 27 de maio de 2018

Deus e o Diabo na Terra do Sol: uma análise anti-dialética

Deus e o Diabo na Terra do Sol: 50 anos depois

Por Luca Szaniecki Cocco

Este filme dirigido em 1964 por Glauber Rocha, possui uma mensagem bastante importante, não só para sua época (precursora dos movimentos de 1968) mas também agora, nos tempos de extremismos e divisões (materiais e intelectuais). Tempos supostamente dialéticos de antagonismos, para ser mais preciso.




Em uma primeira análise, mais ampla, do filme, pensei que este fosse um trabalho de dualidade na sociedade brasileira. De fato, o filme todo é baseado e trabalhado ao redor de dualidades e oposições. Primeiramente o título que faz diretamente referência a uma certa dualidade religiosa: Deus e o Diabo se encontram no sertão. O segundo fator mais explícito é o próprio fato do filme ser realizado em preto e branco (por razões econômicas também eu imagino). Além desses dois fatores mais explícitos e fáceis de captar, há uma longa série de imagens que jogam com essa ideia: Manoel segura a faca e o cristo em uma determinada cena, Corisco divide sua face em duas com seu punhal (conferir a imagem icônica do cartaz do filme), Antônio das Mortes e João o Cego são separados por uma viga de madeira, entre outras.

Os próprios personagens são claramente divididos em suas personalidades e no que eles representam e acreditam. Manoel evolui de trabalhador para assassino, depois de beato para cangaceiro e no final ele é um homem que busca um recomeço. Sebastião é um fanático religioso, a imagem de Antônio Conselheiro, que busca os Céus (ou a Ilha) realizando milagres e redimindo pecadores com o “sangue dos inocentes”. Ele representa esses típicos personagens criados pela miséria e religiosidade do Nordeste, que criam-se a partir de uma oposição a Igreja oficial, e que acabam virando sua própria encarnação. Assim como Antônio das Mortes explica: ”Padre pode achar que Sebastião tem parte com o Diabo, mas eu acho que ele tem parte com Deus também”. Sebastião segue a mesma lógica do Padre que lê sua sentença: “Somente depois que você cometer um crime maior pode ser perdoado pelos crimes que cometeu”. Antônio é um homem da “lei da selva” que mata cangaceiros em nome de sua justiça. Corisco e os cangaceiros representam o outro lado da miséria, que não é o religioso, mas sim o da luta e o da violência. Sua missão é defender o povo (de onde eles vieram, mas são movidos por vinganças pessoais e não tem medo de matar, estuprar e torturar seus supostos inimigos. Eles acreditam que incarnam São Jorge, o santo do povo, lutando contra o Dragão da Miséria.

O filme é então composto de uma longa lista dessas imagens cheias de contrastes e complexidades. Mas não é isso o que há de mais interessante nessa dualidade, por que o filme de Glauber Rocha é muito mais do que um básico filme de dualidades. Pois, ambiguidade não é algo raro no cinema se considerarmos a obra de outros cineastas. Podemos usar como exemplo a ambiguidade ácida (e temperada de humor negro) de Kubrick (Full Metal Jacket, Lolita, Dr.Strangelove,etc.) ou até a estranha familiaridade de David Lynch (Twin Peaks, Mulholland Drive, Rabbits, entre outros). Embora é possível ver algumas semelhanças com o humor ácido de Kubrick e de Glauber Rocha. Esse humor pode ser visto por exemplo nas cenas finais de Deus e o Diabo na Terra do Sol e de Full Metal Jacket.

No que a dualidade do Deus e o Diabo na Terra do Sol é interessante se baseia no fato de que essa divisão supõe um terceiro aspecto é uma visão explicitamente anti-dialética. Primeiro, é preciso entender que esse “terceiro aspecto” não é nada parecido com a “terceira via” ou nada disso. De fato, esse terceiro aspecto, sem nome, é o simples fato que essa dualidade ,na verdade, pressupõe uma multiplicidade dentro do próprio indivíduo. Se tomarmos por exemplo todas essas imagens ambíguas e divididas citadas anteriormente, o que há em comum em todos elas ? O que há entre o Bem e o Mal, o Deus e o Diabo ? Há o Homem. O homem é o encontro desses lados. Mas o homem não se trata de um ser dividido em dois mas sim um encontro de uma multidão de faces.

Alguns podem protestar que nos filme não ha o coletivo de Pasolini. Sim, de fato não há, mas não por que Glauber não acha o coletivo interessante mas sim por que, no filme, ele não precisa. E ele não precisa de uma representação clássica de um coletivo de homens por que cada indivíduo apresentado, protagonista ou figurante, é um coletivo. Um coletivo de experiencias, experiencias de violência, de miséria mas também de felicidade e amor.

E assim chegamos ao segundo ponto interessante dessa dualidade “glauberiana” que é uma teoria anti-dialética. Pois, o filme mostra que Tese, Antítese e Síntese não são entidades separadas na História mas as 3 se encontram, atemporalmente, no Homem. O Homem não é um ser histórico como afirmou Hegel, e depois Marx e Nietzsche. E é nesse ponto, anti-dialético e anti-histórico, onde Glauber insere uma alternativa de Revolta. Dessa forma, Glauber Rocha se aproxima da concepção de revolta de Albert Camus, autor do “Homem Revoltado”, livro (equivocadamente) muitas vezes esquecido e até criticado por fanáticos de todos os espectros políticos.

Essa concepção é explicitamente anti-dialética e uma das maiores críticas do Hegelianismo e seus afluentes (Marx e Nietzsche) assim como o Niilismo. Colocando em poucas palavras, o livro explica como a Dialética de Hegel, na verdade, cria uma utopia que “substitui Deus pelo futuro”. De fato, a lógica dialética da tese e da antítese cria uma narrativa profética a espera de um futuro. Assim, a dialética impede a ação e cria um fatalismo perigoso. Pois, como Camus explica, o futuro é a única coisa que o Mestre está disposto a dar para seu escravo pois a promessa, a profecia de um futuro melhor é o próprio fatalismo da condição do escravo que deve esperar para que a História se realiza. Além disso, ao longo dos anos, a profecia pode se tornar uma garantia para alternativas (que não deveriam ser alternativas) autoritárias se tornarem concretas.

Ainda mais, é preciso marcar a importância dessa mensagem de Camus no mundo da pós segunda Guerra que simboliza em todas as formas de artes o auge do horror e do absurdo do mundo ocidental (e oriental, em particular no universo japonês como visto em várias animações por exemplo) e no começo da Guerra Fria. Camus define sua própria definição de revolta que é contrária ao infinito “devir histórico” da revolução marxista. Sua ideia de revolta se define pela “rejeição de ser tratado como coisa e ser reduzido à simples história”. A revolta, ao contrário da revolução que demanda uma “redução ao estado de força histórica”, é uma verdadeira afirmação de “ser dividido que nós somos”. A história e o Homem não são simples nem dialéticos.

Assim, a lógica revoltada de Camus, que se encontra no filme de Glauber, é o que necessitamos hoje em dia, em um mundo de antagonismos. Pois, como o filme demonstra, o ser humano é um ser composto por várias facetas (assim como explica Camus, a polícia política do século XX demonstrou a “física da alma”), que não podem ser resumidos a seres históricos, dialéticos. Assim, a própria existência de antagonismos em certos grupos humanos é negada. Com a guerra e a violência generalizada, não apenas no Brasil, mas em todas as partes do mundo, precisamos entender que antagonismos são perigosos e propícios a nos dividir, bem quando precisamos nos unir para criarmos alternativas melhores, e não alternativas “menos piores”. O ser humano é um ser complexo e não simplista, o simplismo é uma base perfeita para o autoritarismo. Se me permitem usar um pouco de profecia, se continuarmos em caminhos dialéticos, antagonistas, proféticos, as probabilidades (já altas) de nossas supostas democracias se tornarem Totalitarismos aumentaram conforme nós nos dividimos. Deus e o Diabo na Terra do Sol, afirmando a complexidade junto com a capacidade do ser humano de fazer tanto o bem quanto o mal, representa visualmente uma alternativa possível.



Este texto também foi publicado na Universidade Nômade. 

6 comentários:

  1. Que legal o texto, cheio de coisas interessantes. Queria saber mIs sobre esse lance de Nietzsche afirmar que o homem eh um ser histórico. Sou uma leitora sem muitos cuidados de Nietzsche, mas não havia pensado nisso. Enfim, parabéns pela chegada de vocês no mundo dos blogs. Fora isso, a fonte usada no texto é o espaço entre as linhas dificulta a leitura. Talvez seja legal tentar outra fonte. Beijo grande, vou acompanhar.

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    1. Oii Sindia, obrigado pela dica. Já resolvemos, a leitura deve estar mais fácil a partir de agora

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    2. Quanto a Nietszche, eu não desenvolvi muito nesse texto em particular. Seria preciso um outro artigo apenas dedicado para isto mas posso por um paragrafo explicativo de outro texto meu onde aprofundo a analise de Nietszche por Camus:

      "No caso de Nietzsche, talvez seja preciso fazer algumas nuances. Primeiro, quando Camus afirma que Nietzsche inspirou o conceito de super-homem racista (o homem ariano de Hitler), é preciso contextualizar. De fato, O Homem Revoltado foi publicado em 1951 e Camus morre em 1960: ele não conheceu então o “renascimento” de Nietzsche durante os anos 60 por novos filósofos como Deleuze e Foucault. Até là, Nietzsche era um autor proibido, do “inimigo”. Foi mostrado então durante os anos 60 que Nietzsche não era racista por si e o que o nazismo construiu foi uma interpretação equivocada e que não corresponde a mensagem de “super-homem” do filósofo. Por outro lado, o resto da crítica de Camus não é tão superficial e ele vê um problema histórico, complexo, da filosofia de Nietzsche. Aliás ele dedica uma parte inteira do capítulo “Revolta Metafísica” a análise da filosofia de Nietzsche pois é mais complexo. Camus também atribui a Nietzsche uma filosofia da revolta, ou mais sobre a revolta, que começa com a famosa afirmação “Deus está morto”. Porém, para resumir, Camus explica que a lógica de Nietzsche, assim como a dialética, passa pela visão de um futuro, o fim da história hegeliano ou o fatalismo de Nietzsche. Como Hegel e Marx, ele sempre pensou em função de um tipo de “apocalipse futuro”, mas, ao contrário destes primeiros, ele nunca o exaltou. Embora não seja sua pretensão, para Camus, o novo “homem-deus” de Nietzsche é constituído de um indivíduo que se “inclina diante da eternidade da espécie e do grande ciclo do tempo” (CAMUS, 1951). Para fechar essa parêntese, a crítica de Camus à filosofia nietzschiana não é então completamente sem fundamento nem fruto de uma imagem negativa de Nietzsche, embora podemos fazer algumas nuances. De qualquer modo, Camus estava ciente de que Nietzsche foi utilizado como justificação de pensamentos para os quais ele era contrário (ele era crítico do que chamava de “deformidade antissemita”, por exemplo) mas talvez alguns elementos já estavam postos em sua filosofia sem ele perceber, do mesmo modo que Camus crítica Marx. Para acabar com esse parêntese, uma longa citação de Camus lamentando o destino de Nietzsche:

      “Na história da inteligência, exceção feita por Marx, a aventura de Nietzsche não tem equivalente; jamais terminaremos de consertar a injustiça lhe feita [...] até Nietzsche e o nacional-socialismo, não existiam exemplos de pensamentos inteiros esclarecidos pela nobreza e pelos rasgos (déchirements) de uma alma excepcional que fossem ilustrados aos olhos do mundo por um desfile de mentiras e pelo medonho monte de cadáveres concentracionistas” (CAMUS, 1951). ""

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